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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Na Liberdade com o Bourdain

Na última década nós viajamos o mundo para comer, beber e conhecer gente

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Acordei na sexta com a notícia triste: o cozinheiro, escritor, apresentador de TV, cronópio, gênio da raça e querido amigo Anthony Bourdain havia se matado num quarto de hotel em Haut-Rhin, na França.

Na última década nós viajamos o mundo para comer, beber e conhecer gente. Fizemos sashimi da barriga de um atum enorme recém-pescado no mar da Croácia, assamos porcos na Luisiana, nas Filipinas, na República Dominicana; sentados na calçada, em cadeiras de plástico bambas, na Liberdade, traçamos um espetinho de codorna com cerveja; bebemos vinho na Emilia-Romagna, em meio às parreiras de um castelo em cujo porão são curados, há 700 anos, sob a brisa do rio Pó, o embutido que beliscávamos de olhos fechados, culatello.

No Vietnã compartilhamos noodles com o presidente Obama. Morcela provamos numa dúzia de países: "o chocolate dos deuses", ele dizia. Na Espanha grelhamos frutos do mar à beira do Mediterrâneo, sorvendo a cabeça de camarões gigantes como se não houvesse amanhã.

Naquela tarde ensolarada Bourdain me ensinou que nada concentra tanto o sabor do mar como a cabeça dos camarões. Talvez só o ouriço que um amigo nosso colheu pessoalmente, mergulhando numa praia gelada da Ligúria, Itália, num dia chuvoso. O cara abriu os ouriços com uma faquinha e mandamos ver ali mesmo, nas pedras, nem aí pra chuva.

Bourdain era de uma família enorme. Tataraneto de Gargântua, bisneto de Pantagruel, sobrinho-neto do Picasso, do Miró e do Cortázar, padrinho do brasilianista e "food-trotter" Matthew Shirts, irmão do guitarrista Keith Richards e do poeta Fabrício Corsaletti, foi concebido num banquete em que estavam presentes Moreira da Silva, Mae West, Mark Twain, Josephine Baker, Oswald de Andrade, Janis Joplin, Rimbaud, Hilda Hilst, Louis Armstrong, Leila Diniz, Vinicius de Moraes e Marcos Bassi, só para citar alguns.

Ninguém sabe exatamente quem era o pai, quem era a mãe e tenho certeza de que o Burda, como eu o chamava, nunca se preocupou muito com esse tipo de detalhe.

Meu xará teve dois programas na TV: No Reservations, no Travel Channel e Parts Unknown, que apresentava desde 2012 na CNN. Nestes tempos de gourmetização desenfreada, em que "degusta-se" brigadeiro com garfo e faca e contrata-se sommeliers de água, ele ia na direção contrária.

Comer para ele não era uma firula estética, uma forma de distinção, era uma experiência vital, uma farra. A graça de assistir aos seus programas está menos em aprender sobre culinária do que em ver o prazer dele a cada dentada.

Devorava com a mesma paixão as tripas de porco fritas por boias-frias mexicanos, o pato laqueado de Pequim, o dogão do carrinho em frente à escola de samba Rosas de Ouro, para onde foi levado por Joana Reiss e Renata Megale, "as loucas, más e perigosas assistentes do meu 'publisher' em São Paulo", segundo ele. ("Cozinha confidencial", seu livro de estreia, foi publicado aqui pela Cia. das Letras).

Numa das vezes em que veio ao Brasil, Bourdain me disse, lá na Liberdade: "Uma coisa eu aprendi na vida. Se você está sentado numa cadeira de plástico bamba, de tarde, tomando cerveja, comendo espetinho de uma ave que você não faz ideia de qual é e um vira-lata aparece para lamber a sua perna, você está bem".

Ergui um brinde e fiquei feliz por poder contar a ele, que me ensinou tantas coisas, o que tinha no espeto: "é codorna", eu disse, mas infelizmente Bourdain não me ouviu; naquele dia, como sempre em nossa amizade, eu estava no sofá, ele na televisão. Tintim, brou.

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