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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Surpreendente e inevitável

Os últimos anos têm sido um pêndulo entre o assombro com a realidade macabra e a constatação do óbvio ululante

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"O final de uma história deve ser, ao mesmo tempo, surpreendente e inevitável". A frase, atribuída à escritora Flannery O’connor, me vem à cabeça toda vez que me pergunto se o Brasil acabou. Os últimos anos têm sido um pêndulo entre o assombro com a realidade macabra e a constatação do óbvio ululante: pelo caminho trilhado, não poderíamos ter chegado a outro destino.

Milicianos no Planalto são o final surpreendente e inevitável da nossa história. A morte a pauladas de Moïse Kabagambe também. Surpreendentes e inevitáveis são as enchentes país afora, os mais de 630 mil mortos pela joint venture entre coronavírus & Governo Federal, as queimadas, pessoas comendo lixo ao lado do touro dourado. Como disse Nelson Rodrigues, "Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos".

O ministro da economia se mostrar contrariado com empregadas domésticas na Disney e o filho do porteiro na faculdade surpreende pela idiotice, mas é inevitável se pensarmos que durante mais de três séculos seus antecessores estavam no "business" do "trading" humano. Faz sentido esta triste carranca "liberal" do milicianismo pensar: "Onde já se viu uma mercadoria sonhar com princesas e diploma universitário?!".

Entre nós, o liberalismo sempre foi bem mais Paulo Guedes do que José Guilherme Merquior. Os ideais da liberdade individual são virados do avesso para justificar o esculacho da maioria por meia dúzia. Quando, lá por 1880, discutia-se a abolição, os "cidadãos de bem" citavam o liberalismo para defender a criação de humanos em cativeiro: o Estado não deveria se meter em seus negócios privados.

O liberal brasileiro calça Stuart Mill como um sapatênis importado, para proteger o pé (i. e., a consciência) ao pisar em quem tá embaixo. No conjuntinho vem também os antolhos de Mises e Hayek, ajudando-o a não ver que, aqui, as mãos do mercado não são nada invisíveis quando se trata de descer o sarrafo na patuleia.

Em "São Paulo: o planejamento da desigualdade" (Ed. Fósforo) a urbanista Raquel Rolnik mostra como o nosso fiasco metropolitano não é fruto da bagunça: foi planejado e executado no último século e meio por um conluio entre os donos da terra, as empreiteiras, as concessionárias e o poder público, capturado pelos primeiros —na república velha em eleições fajutas, depois pelo toma-lá-dá-cá do financiamento de campanhas.

Na década de 1890 o empreendimento imobiliário da avenida Paulista recebeu pavimentação, água, luz e esgoto antes de ter qualquer casa. Enquanto isso, em bairros operários como Vila Prudente, Tatuapé e Canindé, a ralé se amontoava em cortiços e pisava na lama. (É na favela do Canindé, aliás, que na década de 1950 Carolina Maria de Jesus escreve "Quarto de Despejo", antecipando em 40 anos "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais MC’s).

A mesma lógica vigora até hoje na ocupação do espaço, da riqueza, das oportunidades. Temos, há 522 anos, um arcabouço institucional que, embora na letra fria (pelo menos desde a constituição de 1988) diga o contrário, serve para garantir os privilégios de meia dúzia, enquanto afasta pra longe com tiro, porrada e bomba, a baixa-renda e a melanina.

O Brasil não é um projeto que deu errado, é o resultado inevitável (surpreendente?) do projeto de uma elite carniceira, tacanha, obsoleta e cafona, para quem a empregada doméstica e o filho do porteiro são uma casta inferior, destinada a se contentar com restos e a trazer-lhes x-burguer de motocicleta. O lumpen-empreendedorismo que, sem carteira assinada, direitos trabalhistas, status social ou seguro saúde, deve implorar por estrelinhas no aplicativo: "obrigado, sinhô".

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