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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Nossa relação é o exato oposto do que acontece numa bolha

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Terça o Wagner reativou o grupo "Churrascada". "Churrascada" é um evento anual em que assadores de todos os cantos do Brasil e do mundo se unem num espaço enorme, você vende um rim, paga o ingresso, prova 785 comidas diferentes e um ano depois, quando tá quase acabando de digerir, recebe uma mensagem do Wagner avisando que vai começar tudo de novo. (Na impossibilidade de vender outro rim, você vende o celular).

O Wagner é marido da Valéria e os dois são pais da Luísa, colega da minha filha desde os dois anos de idade. Eu, o Wagner e a Valéria nos conhecemos pouco, assim como conheço pouco a maioria dos pais e mães da escola dos meus filhos. Temos os grupos de WhatsApp. Nos cruzamos na entrada ou na saída do colégio. Batemos-papo em salões de festa de prédios e bufês infantis —e, desde o ano passado, vamos à "Churrascada".

Confesso, envergonhado, que de alguns pais e mães eu às vezes esqueço os nomes. Sou ruim de nomes, mas sei exatamente quem são, pais de quem, lembro em detalhes conversas que tivemos num parque, cinco anos atrás, à sombra do nariz de fibra de vidro de uma Peppa de três metros, ou entre paredes de escalada, ou sob a luz estrobo num galpão cheio de camas elásticas.

Adams Carvalho

Quando meus filhos entraram na escola eu confesso, novamente envergonhado, ter sentido um pouco de preguiça daquela convivência. Não são pessoas com quem você escolheu se relacionar. Não têm necessariamente qualquer afinidade com você para além do fato mais geográfico do que sociocultural de nossos filhos estarem na mesma sala —e é exatamente isso que, percebi ao longo dos anos, faz desse convívio algo especial.

Eu e o Wagner não devemos ter votado no mesmo candidato, mas jamais tocamos no assunto. Ao contrário das redes, em que procuramos sarna para nos coçar, estamos ali em busca do anti-histamínico terreno comum. Temos o Corinthians. O cinema. O churrasco.

Não sei o que faz a Julia, mãe da Joana Fraganini, mas uma vez meu pai foi atendido por um médico que era primo dela. Anos atrás, numa festa na pracinha, puxamos este assunto, o primo levou o papo pra outros cantos, quando vimos, já era uma conversa.

Com cada um, com o passar do tempo, você vai arrumando um ponto de apoio. "Parece que vai ter show do Paul, de novo". "Pedimos aquele árabe que você falou, excelente.". "E Pindamonhangaba? Tem ido?".

O grupo de zap atravessou o impeachment, a eleição do Bolsonaro, a eleição do Lula. Claro que houve umas rusgas aqui e ali, ninguém é de ferro, mas a turma-do-deixa-disso sempre aparece correndo, com seus extintores. De que adianta sairmos nos estapeando? "Golpista!" "Comunista!" Aí, semana que vem, tem festa do pijama na casa do "golpista", o "comunista" tem que levar, imagina o climão no hall do elevador.

A relação que tenho com esses pais e mães é o exato oposto do que acontece numa bolha. Na bolha, o que une a todos é a embalagem político-ideológica, pouco importando quem está dentro do pacote. Aqui, cada um pensa de um jeito, mas temos algo em comum mais valioso a preservar, o bem-estar dos nossos filhos —e nosso bem-estar no hall do elevador.

Parece pouco, parece ingênuo, mas não é. O apagamento deste terreno comum —Corinthians, cinema, árabe, Paul, seu primo, Pinda, churrasco— é um pré-requisito para as guerras civis, as ditaduras (de direita ou de esquerda) ou mesmo para essa fratura social global que estamos vivenciando. Orgulhai-vos, ó nobres membros do grupo de zap "Quinto Ano – tarde"; sob a rósea napa da Peppa Pig, defendemos, incólumes, o estandarte da civilização!

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