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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Não existe herói de meia

Trump sabia que não poderia aparecer de meias e, uma vez calçado, pôde se levantar garantindo que a atenção não estivesse ao rés do chão, mas lá no alto

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"Pickles é engraçado." "Alka-Seltzer" é engraçado." "Alface não é engraçado." "A letra K é engraçada." "A letra L não é engraçada." É o que explica um velho comediante ao sobrinho na peça "Sunshine Boys", do norte-americano Neil Simon.

Pés são engraçados. Mãos não são engraçadas. (Isso digo eu, embora tenha certeza de que o Neil Simon concordaria). O pé é uma mão errada. Seu duplo no mundo bizarro. Enquanto as mãos escrevem poemas, lutam esgrima, realizam neurocirurgias, os pés vivem na poeira, pisam em cocô, exalam chulé. Seus dedinhos incompetentes não seguram uma Bic, não dão a partida num Chevette, não abrem um Chicabon.

"Meter os pés pelas mãos" é fazer uma trapalhada. É tentar executar, com esses rudimentares habitantes das regiões austrais do nosso corpo, tarefas dignas dos evoluídos membros do norte. (Sim, a frase tem claros laivos colonialistas: foi digitada pelos membros do norte, não pelos habitantes austrais).

Os pés servem no máximo pra chutar uma bola. Aliás, José Miguel Wisnik, em seu brilhante livro "Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil", discorre sobre como no vôlei ou no basquete, jogados com as mãos, é muito raro um time ruim ganhar de um bom. Já no esporte bretão, jogado com as canhestras chulapas, a zebra está sempre à espreita. Arremessar é preciso, chutar não é preciso. Resumo da ópera: pé é zoado.

Donald Trump tinha isso na cabeça, além de sangue, duas semanas atrás. Assim que os agentes do serviço secreto recebem a informação de que o atirador estava morto e dão a ordem para saírem do palanque, Trump estaca: "Meus sapatos! Deixa eu pegar meus sapatos!". Um agente diz: "Senhor, tem sangue na sua cabeça". Outro o apressa: "Vamos pro carro!". Trump insiste: "Deixa eu pegar meus sapatos!".

Trump é um gênio da comunicação. (Um gênio do mal, claro, mas um gênio.) A partir do momento em que percebeu que havia levado um tiro, abandonou o protocolo do serviço secreto e abraçou imediatamente o do show business: começou a dirigir o espetáculo em que atuava.

Trump diretor sabia que o Trump personagem não poderia, em hipótese alguma, aparecer de meias. Existem heróis descalços e heróis calçados, heróis de botas, sandálias, sapatos ou tênis, mas é inconcebível um herói de meias. Imagina se Trump sai capengando de meias de bolinhas? Com tronchas meias bordô, sobrando na frente feito a língua de um cachorro exausto, revelando o calcanhar? Ou, ainda, se ele percorre seu "walk of shame" com um dedão escapando por um furo?

O diretor do espetáculo, porém, privou o mundo desta desastrosa visão. Uma vez calçado, o personagem pôde se levantar detrás do púlpito, garantindo que a atenção não estivesse ao rés do chão, mas lá no alto, no punho erguido em direção ao céu e à bandeira americana: "Fight! Fight!".

Quem sabe, se tivéssemos visto as meias de Donald Trump, Biden ainda estaria na disputa? Quem sabe as meias de Trump amenizariam por um instante a imagem fragilizada de Joe Biden —aquele senhor que, mesmo de terno, nos convida a imaginá-lo de ceroulas? Jamais saberemos. O que sabemos é que, felizmente, Biden saiu. (Ceroulas x Meias até poderia dar empate. Ceroulas x Sapatos daria Sapatos.)

Agora é torcer para que Kamala Harris suba nas tamancas, consiga colocar Trump na parede e tirar não só os seus sapatos, mas também as meias, revelando ao mundo que no lugar de dois pés ele traz nauseabundos cascos de bode. Cascos de bode não são engraçados.

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