Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Deixa a porta aberta

Os lugares que já habitamos nos habitam também; deveríamos ter uns altarezinhos com fotos de cada casa em que moramos antes

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Esta noite sonhei com a casa em que morei dos 20 aos 24. Era um sobrado ali na Mateus Grou, numa vila entre a Cardeal e a Teodoro. Acordei com a casa viva na minha memória. Melhor: eu que estava vivo dentro da casa. Naquele lusco-fusco entre o sono e a vigília, passei pelo portão elétrico encrencado, vi sobre a calçada o jornal dentro do plástico amarelo, passeei por cada cômodo pisando sobre os tacos soltos, ouvi a gaveta das meias ranger, senti o cheiro úmido do socavão onde ficavam as malas, cheguei até a sofrer de novo, um pouquinho, por um pé na bunda em 2001. (Por onde andará a cruel Manuela, que me trocou por aquela besta eslava?).

Não gosto de falar de sonhos. Sonhos geralmente só dizem algo a quem os sonha, pra todos os outros são apenas groselha. "Era um pinguim, mas eu sabia que o pinguim era a minha vó, daí a gente tava numa lata de leite condensado, que era ao mesmo tempo o berço da minha filha, daí a gente entrava por uma porta e eu ia pra sétima série, não a sétima A, a minha, mas a sétima C, do Nicholas, que tinha um isqueiro zipo do Bob Marley e...".

Este sonho, porém, me trouxe um pensamento curioso: temos um arsenal gigantesco para lidar com o luto relacionado a pessoas, mas nenhum em relação a lugares. É possível dizer que chorar nossos mortos é o que nos faz humanos. Quando aparece flor e concha em cova é que os arqueólogos podem afirmar: aqui jaz um Homo sapiens.

A imagem é uma ilustração que mostra um reflexo de luz no chão de madeira, provavelmente de um corredor ou entrada de uma sala. O chão é composto por tábuas de madeira em tons de marrom e vermelho, e a luz cria um efeito de brilho que se espalha em um padrão diagonal.
Adams Carvalho/Folhapress

Pois, reverenciamos nossos mortos. Reverenciamos muito bem, também, nossas datas. Trinta e um de dezembro. Sete de setembro. Treze de maio. Vide o último feriado de 9 de julho, em SP, no qual relembramos não só os mortos, Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, como a data dos mortos, na Revolução Constitucionalista de 1932. (A maioria das pessoas não tem a menor ideia do que foi isso e ainda assim tem o feriado).

Para com os lugares, no entanto, somos de uma frieza polar. Em que data você celebra a casa da sua infância? Quando acende velas pra extinta chácara dos seus avós? O apartamento em que vocês moraram recém-casados, todo arrumadinho pra chegada do bebê, foi abandonado sem choro, nem vela, nem fita amarela, depois da separação. Lágrimas rolaram por conta da separação. Pelo apartamento, não.

Não costumo cultivar a nostalgia. É um sentimento fácil, um glutamato monossódico das emoções. Você fala: "pensa nos tempos da faculdade, nas chopadas da atlética" ou "lembra dos natais na casa do tio Zé Eduardo" e pronto: tá cheio de Ajinomoto correndo no sistema límbico, caldo Maggi e Knorr inundando as sinapses.

Mas nem toda emoção relacionada ao passado é tempero vagabundo. Os lugares que já habitamos nos habitam também. Estão dentro da gente, como descobri ontem, ao revisitar o sobrado da vila. Deveríamos ter, num canto de cada casa em que morássemos, uns altarezinhos com fotos de cada casa em que moramos antes. Talvez umas velas e incensos acesos na frente. E deveríamos reverenciar essas fotos todo dia, como reverenciamos nossos ancestrais. Viemos dali. Somos feitos dali.

Enquanto os caras da transportadora levam a última caixa, encaro o apartamento vazio. As marcas dos móveis no chão e os pregos dos quadros da parede contam uma história que só eu conheço e que morrerá comigo. Descemos pelo elevador de serviço e deixo a chave com o Adenilson.

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