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Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Descrição de chapéu tecnologia

É o desvio, estúpido!

Sem contradições humanas, arte tende à uniformização na era da inteligência artificial

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Aprendemos a dar por contraintuitiva toda oposição entre igualdade e diversidade. Lutamos pelas duas. Vem daí a resistência a entender que elas também possam se anular.

Uma obra de arte antes rejeitada pelas convenções de uma maioria conservadora, por ser demasiado radical ou diferente, pode ser rejeitada ainda com mais propriedade, por razões morais ou políticas, por ser individualista, elitista etc.

Exposição em Montréal, na província canadense do Québec, produzida com inteligência artificial - AFP

Não será a primeira vez que isso acontece. Padrões morais imperaram em outros momentos da história, inclusive sob pretexto revolucionário, como no realismo socialista. A norma assume o rosto da justiça social. É em nome da igualdade e da democracia que você desautoriza a exceção. A diferença que não corresponde ao que se espera, o que não representa a maioria. É essa a perversão da lógica do mercado, ao qual a chamada arte política, que antes o combatia, agora se aferra.

Ser político hoje, nas artes, é lançar-se à conquista de um lugar de representatividade, sem o qual não há visibilidade possível. A medida de valor é o tamanho ou alcance do reconhecimento da representação. O desvio, quando não naturalmente ignorado, passa a ser associado ao pior sentido da exceção, com a chancela de um juízo objetivo que só o mercado pode dar.

A crítica e o dissenso já não têm aí nenhum valor. São apenas discurso interessado e exterior, subjetividade enviesada. Tornaram-se anacrônicos ao dar um passo atrás e pôr a vivência do presente em questão e em perspectiva, refletindo sobre o que não representam.

Não é novidade que o público passe a repetir e admirar as mesmas coisas, que haja massificação e uniformização do gosto. A novidade é a inversão: como o chamado "mainstream", confundido com representatividade, de repente assume o lugar da radicalidade política e da diferença, enquanto as anula e as pasteuriza. As palavras de ordem e os discursos automáticos podem então se disseminar como natureza inquestionável, banindo, como representação conservadora, o pensamento que os põe em dúvida.

Não é preciso ser nenhum vidente para perceber a correspondência entre esse estado de coisas e o mundo digital organizado pela internet, com sua lógica performática de algoritmos, likes e lacres na criação de bolhas de autossatisfação. Entretanto, um artigo publicado recentemente pelo The New York Times contribui para o entendimento desse mecanismo de reprodução e pasteurização no funcionamento da própria inteligência artificial.

O jornal mostrou como pesquisadores, alimentando a inteligência artificial com um certo número de dados e fazendo com que ela os replicasse um certo número de vezes, chegaram ao colapso do modelo. Quanto mais a informação se dissemina por IA, sem as correções e as interferências do homem e do real, ou seja, sem contradição, mais ela tende a uma pasteurização na qual as diferenças se tornam irreconhecíveis. Tudo fica igual, dos algarismos aos rostos. Tudo perde definição e identidade (no sentido de diferença) para se identificar completamente uns com os outros, indistintos.

É a ilustração da presunção de que, para o bem ou para o mal, você só pode corresponder ao que já se espera de você, à imagem feita dos seus pares. O preconceito de que não há desvio possível de uma norma ou modelo preestabelecido, seja ele de classe, de raça, de nacionalidade ou de gênero, e que a exceção é sempre social e politicamente suspeita.

As pesquisas mostram que a equalização digital fica mais lenta e menos perceptível quando há novas entradas de dados não gerados por IA, o que permite corrigir as distorções. No final, porém, sem as contradições do homem e do real, a tendência à uniformização acaba se impondo.

Se alguém ainda tinha alguma dúvida sobre o lugar de resistência da arte, a era da inteligência artificial na qual apenas entramos serve de alerta: não é o pertencimento; é o desvio.

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