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Rafael Cardoso

Arte contemporânea, engolida pelo mercado financeiro, vive declínio

Poder de corporações e galerias gigantes debilita crítica especializada, impulsionando atravessadores e aventureiros

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[RESUMO] Visitas a exposições recentes deixam a impressão de empobrecimento e falta de originalidade da arte contemporânea, e artistas medianos são incensados mais por suas posturas que por sua expressão estética. O ocaso, argumenta o autor, está relacionado a práticas despudoradas do multibilionário mercado de arte global, que causou a erosão da autoridade de críticos.

Há uma percepção comum de que o mundo das artes visuais mudou para pior nos últimos anos. Como todo juízo sobre o presente, sua exatidão é impossível de averiguar. Ao contrário, alguns defendem que nada mudou, que se trata apenas da distorção que vem de observar a própria época a partir de um ponto de vista parcial.

Talvez tenham razão. A arte vive de crise em crise pelo menos desde 1840, quando o pintor francês Paul Delaroche (1797-1856), ao tomar conhecimento da fotografia, decretou a morte da pintura. Quase 200 anos e meia dúzia de atestados de óbito depois, a finada continua vivíssima. A constatação de Delaroche encerra uma verdade, contudo, pois a fotografia marcou o perecimento de certa visão da pintura. Ao pregarem que tudo sempre foi do jeito que é, os continuístas podem até errar menos que os alarmistas, mas as grandes mudanças desbancam as sábias ponderações.

Visitantes na abertura da feira Art Basel, na Suíça - Fabrice Coffrini - 13.jun.23/AFP

A percepção do declínio precisa ser matizada por causa do viés cognitivo que distorce a visão do passado. Ao envelhecerem, as pessoas tendem a se agarrar à época em que experimentaram o prazer da descoberta e a desprezar o que veio depois. Minha avó, que estudou no Instituto Nacional de Música por volta de 1920, contava que, certa vez, seu pai a ouviu tocar uma peça de Ernesto Nazareth e sentenciou: isso não é música, é barulho.

A nostalgia de tempos melhores faz ainda esquecer o que havia de ruim nos supostos anos dourados da fantasia de cada um. Quando o assunto é história da arte, todos lembram os grandes nomes, mas só os especialistas conhecem a profusão de artistas menores. Somem-se a eles os marginalizados em sua própria época e se tem o saldo da memória seletiva.

Feitas essas ressalvas, vou me alinhar com os que percebem o declínio. Ultimamente, a cada visita a uma exposição coletiva, saio com a impressão de que anda empobrecida a reflexão sobre linguagens artísticas. As soluções plásticas se repetem, as formas viram fórmulas, os enunciados se reduzem à afirmação do óbvio.

Mesmo reconhecendo que sempre despontam talentos e promessas, tenho visto pouca originalidade e ainda menos erudição. Artistas que seriam tidos como medianos duas décadas atrás são alçados ao patamar de primeira grandeza, incensados mais por posturas e postulados que pela capacidade de transformá-los em arte.

Os critérios mudaram? Tornaram-se menos elitistas? São perguntas importantes. O meio antes restrito das artes plásticas passou por uma explosão de popularidade neste início de século 21. Há muito que as exposições de arte contemporânea não atraíam público tão amplo e diverso, no contexto brasileiro especialmente.

Em entrevista recente, Raphael Fonseca, curador da próxima Bienal do Mercosul, aponta a ascensão de outros protagonistas, muitos de origem periférica como ele. A mudança geracional causa incômodo —quem sai de cena sai atirando.

Não existe equivalência automática entre popularização e perda de qualidade. Picasso, Dalí e Warhol, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica e Nelson Leirner produziram grandes obras em diálogo com a cultura de massa. É elitista supor que a massa seja incapaz de deglutir o biscoito fino da arte.

O ímpeto de restringir a apreciação estética a poucos iniciados está longe de ser universal. Na Europa, data do século 18 a invenção das belas-artes como categoria acima das outras. Em muitas culturas não ocidentais, inexiste essa distinção.

Foi para retomar a ideia de uma arte para todos que William Morris se engajou no século 19 pela unidade entre artes e ofícios. Já no século 20, algumas das vanguardas mais vibrantes, do construtivismo russo à Internacional Situacionista, abraçaram a meta de integrar o fazer artístico à vida coletiva.

Embora não haja oposição necessária entre arte e comércio, tem sido espantoso o alastramento do mercado de arte nas primeiras décadas do século 21. Não há precedente para o despudor com que hoje se borra a fronteira entre interesses pecuniários e valores artísticos.

Os conselhos de museus e bienais estão repletos de operadores do mercado financeiro, muitos deles colecionadores. O ex-presidente da Bienal de Veneza Paolo Baratta (2008-2020) é banqueiro, assim como o atual da Bienal de São Paulo, José Olympio da Veiga Pereira.

A Artex, bolsa de valores online para obras de arte, sediada em Liechtenstein, almeja expandir um mercado estimado por seu fundador, ex-gestor de fundos de investimento, em US$ 60 bilhões (R$ 308 bilhões). A empresa planeja realizar seu primeiro IPO (abertura de capital na Bolsa de Valores), de uma obra de Francis Bacon, comprada por US$ 52 milhões (R$ 263 milhões) em 2017 e que será fragmentada em ações a partir de US$ 100.

Em paralelo, proliferam pelo mundo os "freeports", grandes armazéns construídos em zonas livres de impostos, muitos fora de qualquer jurisdição nacional. Alguns dos maiores já contêm mais obras de arte que o Louvre. Esses paraísos fiscais do colecionismo atraem quem quer praticar a lavagem de dinheiro, já que o mercado de arte é menos regulamentado que qualquer outro ramo de ativos financeiros.

A aura de prestígio que emana de grandes museus, casas de leilão centenárias, galerias situadas nos melhores endereços das grandes capitais dá um verniz de respeitabilidade a um comércio notório por suas ligações históricas com fraude, roubo e outros crimes.

Nesse meio de muito dinheiro e não pouco glamour, pululam —afora os artistas e a nata dos colecionadores ultrarricos— toda espécie de intermediários, influenciadores, furões, aventureiros e apostadores.

Os que dispõem de capital cultural, mas não financeiro, viram curadores. Competem-lhes as tarefas fundamentais de fazer a triagem de artistas e obras, organizar mostras e exposições, pautar as discussões para a imprensa. Os curadores constituem a face pública de organizações cuja estrutura privada é tudo menos transparente. Quanto maior sua capacidade de encenar a radicalidade, mas praticar a maleabilidade, mais duradoura sua ascendência.

Hoje, o tamanho do mercado de arte global faz empalidecer o conluio histórico batizado, ainda nos anos 1960, de "dealer-critic system". Na análise histórica de Harrison White e Cynthia White, o sistema artístico era movido a acordos entre marchands e críticos com o objetivo comum de promover artistas escolhidos.

Porém, a influência dos marchands do passado é café pequeno ao lado dos megagaleristas do presente ou do poder de conglomerados como MCH Group (dono da franquia Art Basel), Endeavor Group Holdings (dona da revista Frieze, da Frieze Art Fair, The Armory Show e, bizarramente, da UFC) e a LVMH (dona da Fundação Louis Vuitton e da revista Connaissance des Arts), grupos que reúnem coleções, feiras e imprensa sob um único guarda-chuva empresarial.

Como todo ramo de atividade econômica que se expandiu sob o pacto neoliberal, o mercado de arte procedeu nas últimas décadas a uma racionalização de suas operações, reestruturando práticas e eliminando atribuições desnecessárias. Uma função tradicional caída quase em desuso é a crítica especializada.

Sua fragilidade se deu a ver em 2021 no embate em torno da artista Grada Kilomba, preterida na escolha da representação portuguesa na Bienal de Veneza. Sua candidatura foi derrotada no júri pelo professor e crítico de arte Nuno Crespo. Em seguida, o curador responsável pelo projeto lançou na imprensa internacional acusações de racismo. O assunto ganhou repercussão imediata nas redes sociais e deu no cancelamento de Crespo.

Analisados seus argumentos, no entanto, não há indícios de racismo, mas ponderações de ordem crítica. O jurado julgou que o projeto apresentado pela artista era banal e repetitivo. A violência da reação contrária demonstra o quanto anda desacreditado o conhecimento especializado em arte.

O desfecho desse episódio poderia ser atribuído aos exageros dos chamados movimentos identitários, mas é simplista reduzir a questão ao seu teor manifesto. Antes, ele exemplifica a pulverização do juízo crítico nestes tempos de redes sociais. Se a opinião de todos tem o mesmo valor e igual potencial para ser repercutida, então não é mais possível chegar a um consenso do pensamento informado.

A atual erosão da autoridade crítica foi facilitada pelo fato de que já não havia consenso anterior. Existiam as hierarquias de poder e privilégio, que garantiam a uns serem ouvidos enquanto outros eram postos à margem. Vieram as grandes mudanças das últimas décadas —em especial, a deglutição do meio artístico pelo mercado de arte— essas estruturas foram revolvidas.

Resta a pergunta: a quem interessa o declínio da crítica de arte? Aos artistas antes patrulhados por ela? Talvez, mas só aos cabotinos. Quem lucra diretamente com a ausência de valores críticos na arte são aqueles que transformam a arte em valores monetários.

Sem a fiscalização, ficou mais fácil para o atravessador. A mercadoria que antes podia ser invendável, se decretada deficiente, hoje enfrenta menos obstáculos. São poucos os que ainda se importam em indagar sua procedência e o quanto ela carrega de ágio e inflação.

A qualidade de um alimento varia muito dependendo se é produzido por uma pequena cooperativa artesanal ou uma imensa fábrica de enlatados. Será que o mesmo princípio não vale para a arte? Seria apenas questão de opinião?

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