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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Intervenção militar?

Se territórios do crime são posses de nações invasoras, o Exército é o jeito certo de combatê-los

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Oito ou nove anos atrás, eu passava os fins de semana no Rio de Janeiro, em São Conrado ou, como a gente dizia, no baixo Rocinha.

Na primeira vez que fiz compras na feira do Boiadeiro, meio temeroso, fui com João, que era nosso funcionário e morador da Rocinha.

E eis que, entre as barracas de frutas, carnes e legumes, cruzamos com um jovem de bermuda, chinelos, camiseta e rifle automático em riste. Quase desisti, achando que não fosse um bom momento para levar uma bala perdida (ou acertada), mas imediatamente constatei que, nos outros ao meu redor, comerciantes e clientes, a presença do jovem tinha um efeito apaziguador.

De fato, João me explicou, a feira era "tranquila", não tinha roubo nem nada, justamente porque os donos do morro vigiavam pela boa ordem e paz. Fui me acostumando com meninos armados pelas ruas da Rocinha e ao longo da Estrada da Gávea —que atravessa a favela (ou comunidade) e onde circulam os ônibus. Eu usava regularmente, aliás, a estrada da Gávea, sobretudo no fim do dia, quando o trânsito engarrafava o túnel Lagoa-Gávea ou a avenida Niemeyer.

Rapidamente, achei normal cruzar, a pé ou de carro, com os soldados do tráfico que, em tese e de fato, policiavam o espaço público.

Em suma, a Rocinha não era para mim uma área dentro da cidade e do estado do Rio, um lugar definido por ser perigoso e "de má fama, frequentado por desordeiros" (uma definição online de "favela"). A Rocinha tinha se tornado, para mim, um outro país, com outra gestão, outro exército, outra polícia, outros impostos pagos a outro governo etc.

Como acontece em vários casos de pequenas nações encapsuladas em outras maiores (Vaticano, San Marino, Mônaco etc.), não há fronteira visível ao sair do Brasil e entrar nas favelas cariocas. E os governos das favelas não emitem passaporte, nem documentos de identidade, nem moeda própria.

Mas, fora isso, talvez elas sejam mesmo países independentes, autônomos, que garantem serviços (energia, gás, cabo) e ordem, cobram impostos, administram sua justiça e protegem os confins contra invasões potenciais (só a saúde e a educação dependem parcialmente do Estado brasileiro).

Em épocas mais favoráveis, na Europa ou nos EUA, o crime organizado comprou políticos e governos, mas nunca sonhou em constituir um Estado a parte, com território próprio. Agora, territórios do crime organizado, independentes, já existiram (e talvez ainda existam) dentro de outros Estados sul-americanos.

Na Colômbia, por exemplo, o tráfico quis controlar partes importantes do território nacional e teve ambições de governo (Pablo Escobar sonhava ser presidente do país). Mas se tratava de extensões rurais, controladas para proteger as plantações e a produção de cocaína: o tráfico colombiano não transformou, que eu saiba, uma área urbana em Estado dentro do Estado.

Essa é uma realidade brasileira, que se explica assim: o Estado brasileiro é ausente a ponto de deixar a porta aberta a uma ambição maluca do crime (que seja o tráfico ou as milícias) --a ambição de governar como Estado soberano.

Certamente, o Estado brasileiro fracassa pela miséria dos serviços oferecidos (ou nem sequer oferecidos), pela inépcia, pela gestão fraudulenta e criminosa dos recursos, pela corrupção etc. Mas esse fracasso talvez seja mais uma consequência do que uma causa da inconsistência do nosso Estado.

A desvalorização do Estado no Brasil me surpreendeu quando cheguei e ainda me surpreende. Escrevi um livro sobre isso, mas, na nova edição de meu "Hello Brasil!" (Três Estrelas), poderia ter dedicado um capítulo às minhas andanças pela Rocinha. Constatar que a favela (ou comunidade) se apresenta como um Estado independente é o melhor jeito para entender que, para nos que vivemos aqui, o Estado brasileiro tem pouca relevância simbólica: como na colonização extrativista, somos uma mina a céu aberto, para ser explorada por políticos, administradores, empreendedores"¦ por que um pedaço não seria explorado pelo crime organizado?

Consequência divertida. Sempre pensei que, no território nacional, o Exército só deveria intervir para ajudar em caso de catástrofe natural, mas talvez os territórios do crime sejam posses de nações estrangeiras, inimigas e invasoras: se esse for o caso, o Exército seria o jeito certo de combatê-las.

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