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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Os que têm ideias, os técnicos etc.

Para ideólogo, o que importa é a transformação da qual o mundo precisa

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Nos anos 1960, para mim, não havia “técnicos”, só tecnocratas. Se um governo nomeasse um ministro por ele ser competente (com as credenciais de quem estudou e ponderou as questões-chave do seu ministério), todos gritaríamos contra o domínio da razão abstrata, que, pensávamos, indiferente ao sofrimento provocado, acabaria com a criatividade, as ideias, o desejo, a espontaneidade e a poesia.

Tínhamos algumas razões para desconfiar dos técnicos. Afinal, as duas guerras das quais éramos filhos foram guerras de expansão entre nações rivais ou guerras da ciência e da indústria militar contra o homem, por cima das nações? Qual a relação entre a vontade de conquista e a “necessidade” de usar as armas, uma vez que elas foram inventadas? Perguntávamos isso 20 anos antes de assistir a “O Exterminador do Futuro”.

De fato, éramos sobretudo neuróticos. Encarávamos os técnicos como substitutos dos pais no dia em que a gente pedia sorvete e eles respondiam que não havia dinheiro para sobremesa.

“Técnicos”, em suma, eram aqueles que tentavam nos explicar por que não dava para fazer o que a gente queria. Hoje, ele explicariam por que é necessária uma reforma previdenciária.

Nos os chamávamos de tecnocratas porque eles pareciam se servir de sua “técnica” e ciência para justificar seu poder.

Resumindo: nos anos 1960, a gente era sonhador e odiava os tecnocratas, que assassinavam nossos sonhos em nome da “realidade”. 

Já nos próprios 1960, muitos sonhadores deixaram de ter apenas vontades, desejos e impulsos aparentemente generosos; eles começaram a ter ideias, de modo a poder contrapor uma visão do mundo à “realidade” invocada pelos tecnocratas.

Os sonhadores passaram assim a acreditar em ideias: eles se tornaram ideólogos. Ideólogo acredita na Bíblia e acha portanto que Darwin estava errado. Ou então ideólogo acredita em Marx e acha que o comunismo é inelutavelmente o fim da História. Dá na mesma: ideólogo é quem pensa a partir de sua ideologia, não a partir da realidade.

Como se forma um ideólogo? O ingrediente básico é a paranoia, que organiza o pensamento num sistema, dá sentido a tudo e, claro, designa os inimigos.

O sonhador podia ser inconstante e mutável como são os sonhos. No ideólogo, o que importa não são os quereres, mas é a transformação da qual “o mundo precisa”. O ideólogo tem certeza da necessidade de seu plano e do caminho para realizá-lo. E ele sempre tem razões “superiores” para menosprezar os custos de seu projeto: o bem de todos, os “princípios”, seu deus etc.

Ao longo dos anos 1980 (fim da Guerra Fria), não digo que a gente deixou de ser ideólogo, mas o fato é que, aos poucos, os tecnocratas voltaram a ser chamados de técnicos. 

Ou seja, começamos a levar em conta os custos das ideias e a prestar atenção na realidade. Talvez esse seja um jeito de dizer que nos tornamos social-democratas. A virada não foi difícil, pois os que permaneceram ideólogos, em geral, levaram suas comunidades à falência.

Chegamos, aliás, nos 1990, a constatar que qualquer ideólogo é perigoso. É ótimo ter ideias sobre como levar sua vida, mas é péssimo acreditar que a sociedade inteira precise dessas ideias. 

E hoje? A década na qual vivemos parece ter um novo carinho pelos ideólogos —e um novo desprezo pela competência dos técnicos. 

No novo governo brasileiro, por exemplo, com a exceção da Fazenda, onde Guedes poderia não ser um ideólogo ultraliberal, mas um técnico (logo saberemos), vinga uma preferência pelos ideólogos: na Educação, no Itamaraty, no ministério misteriosamente dito da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Como governantes, os que têm suas ideias (os ideólogos) são os mais apavorantes: a história mostra que eles não recuam diante de nada para a maior glória de seus pensamentos.

Os sonhadores também são péssimos para governar e se tornam ideólogos facilmente. 

Restam os técnicos, que, como a gente receava, podem mesmo ser seduzidos por razões abstratas e perder de vista as exigências da vida concreta de todos em nome, sei lá, de um equilíbrio contável. 

Conclusão? Gostaria que surgisse uma nova categoria: os empíricos, ou seja, os que pensam, a cada vez, a partir da realidade concreta, em toda sua complexidade.

Nota sobre a coluna passada. Agradeço aos leitores que me assinalaram que o seriado “Babylon Berlin” está disponível no Brasil, na Globoplay. Não percam!

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