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Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Descrição de chapéu vale do javari forças armadas

Na Amazônia, a paisagem do crime

A política de Bolsonaro é o fruto final de uma tradição de abandono de três décadas

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Na cena do crime, entre duas curvas do rio Itaquaí, encontrou-se uma mochila, roupas, documentos pessoais e os restos mortais de Dom Philips e Bruno Pereira. Há, ainda, uma lancha submersa e dois suspeitos, pescadores, habitantes da comunidade ribeirinha de São Gabriel. Já a paisagem do crime, mais complexa, compõe-se de um espaço internacionalizado e de um tempo histórico. Suas balizas foram tortuosamente indicadas nas declarações de Bolsonaro e Hamilton Mourão.

O presidente classificou o triângulo do Javari como região "selvagem", onde "tudo pode acontecer", definindo a viagem do indigenista e do repórter como uma "aventura". O vice qualificou a região como "inóspita" e "perigosa", "afastada de tudo", na qual "uma serie de ilegalidades acontece", para lançar às vítimas a acusação implícita de irresponsabilidade. De fato, ambos estão dizendo que o Estado renunciou à soberania sobre extensas faixas da Amazônia brasileira.

Policial isola área no rio Itaquaí (AM), nos trabalhos de busca a Bruno Pereira e Dom Phillips - Pedro Ladeira - 11.jun.22/Folhapress

No palco do teatro político, podemos encerrar o assunto proclamando que Bolsonaro tem "as mãos sujas de sangue de Dom e Bruno". O veredito fácil produz aplausos virtuais em redes sociais, inscrevendo-se no clima da campanha eleitoral. Alternativamente, existe o caminho de iluminar o percurso que fabricou a paisagem do crime.

Até Bolsonaro, todos os governos pós-ditadura assumiram o compromisso genérico de proteção da Amazônia, descrevendo-o como fiscalização das fronteiras, preservação da floresta e garantia dos direitos indígenas em terras demarcadas. Faltou, contudo, um projeto nacional de desenvolvimento capaz de gerar trabalho e renda para os 28 milhões de habitantes da Amazônia Legal.

Lula até ensaiou um passo nessa direção, por meio do Plano Amazônia Sustentável, de 2008, apresentado por Mangabeira Unger com as palavras "a Amazônia não é apenas uma coleção de árvores; existe ali um grupo de pessoas". O projeto morreu no berço, pois o governo não pretendia entrar em conflito com as elites políticas da região – ou seja, efetivamente, com a densa trama de negócios ilegais ancorada no desamparo das populações. Nessa trama, incontáveis fios conectam o pescador ribeirinho ao garimpeiro, ao madeireiro e aos cartéis do narcotráfico.

A política amazônica de Bolsonaro é o fruto final, envenenado, de uma tradição de abandono reiterada ao longo de três décadas. Na sua base encontra-se a perversão do conceito de soberania. "A Amazônia é nossa" significa, para o governo atual e seu cortejo de militares sem bússola, que a região é terra sem lei, aberta aos negócios da exploração madeireira, do garimpo mecanizado, da invasão de terras indígenas, das expedições evangelizadoras, do tráfico internacional de drogas e armas.

Nas monarquias do passado, soberania era um fim em si mesmo: o privilégio real de extrair soldados e tributos dos súditos que viviam num território delimitado. No Estado-Nação, pelo contrário, soberania é um meio para um fim: promover o bem-estar dos cidadãos que habitam o território nacional. De Sarney a Temer, passando por FHC e Lula, os governos encararam a Amazônia como "uma coleção de árvores". Bolsonaro deu o passo seguinte, identificando os interesses dos cidadãos amazônicos com os das máfias criminosas que operam numa região "selvagem", "inóspita" e "perigosa".

Três anos atrás, na cúpula do G7, Macron mencionou os incêndios na Amazônia. A réplica veio na Ordem do Dia do Exército de 23 de agosto de 2019: "Aos incautos que insistem em tutelar os desígnios da brasileira Amazônia, não se enganem: os soldados do Exército de Caxias estarão sempre atentos e vigilantes, prontos para repelir qualquer tipo de ameaça". Hoje, a paisagem do crime expõe a dimensão da mentira. Curvados ao capitão da desordem, os "soldados de Caxias" admitem seu fracasso na missão de assegurar o poder estatal na "brasileira Amazônia".

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