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Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

O crime mais perverso da história do capitalismo

E atenta à queda no número de fumantes, a indústria lançou o cigarro eletrônico

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Descontada a escravidão, o cigarro foi o crime mais perverso da história do capitalismo internacional.

Se compararmos as mortes causadas por esses dois crimes abjetos, veremos que a indústria do fumo matou mais gente nos últimos cem anos do que a escravidão o fez em toda a história da humanidade.

Fumar encurta a duração da vida: em média, dez anos se for mulher e 12 anos se for homem. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), neste século 21 o cigarro provocará cerca de 800 milhões de óbitos.

No decorrer do século passado, a indústria do fumo investiu bilhões de dólares em campanhas publicitárias ao redor do mundo para associar o cigarro às práticas esportivas, ao sucesso profissional, à beleza das mulheres e ao charme dos homens ricos. Com essa estratégia traiçoeira, subornos e um lobby político milionário, corrompeu autoridades e calou a mídia. Qualquer notícia, reportagem ou comentário que mencionasse um problema de saúde causado pelo fumo era punido com retaliação financeira.

A ciência provou a associação entre cigarro e câncer ainda nos anos 1950. A pressão das companhias, no entanto, impediu que essa informação fosse veiculada pela imprensa por mais de três décadas.

Quando o mundo se deu conta das inúmeras doenças ligadas ao fumo e dos custos para os sistemas de saúde, diversos países iniciaram campanhas educativas e criaram leis para proibir a publicidade pelos meios de comunicação de massa.

Embora anos mais tarde do que os países industrializados, o Brasil adotou uma série de medidas de combate ao fumo, consideradas exemplares pelos especialistas da OMS. Como consequência, a prevalência de adultos fumantes em nosso país caiu para menos de 10%. Hoje, fumamos menos do que os norte-americanos e do que em todos os países da Europa.

Ilustração de Libero Malavoglia para coluna de Drauzio Varella de 1° de novembro de 2023 - Libero Malavoglia/Folhapress

Atenta às transformações sociais que levaram à diminuição do número de fumantes e às perdas provocadas pelas mortes precoces dos consumidores, a indústria criou o cigarro eletrônico. Não fiquei surpreso; mais de 30 anos frequentando cadeias me ensinaram a não subestimar a perversidade do mundo do crime.

Há diversos produtos no mercado, mas todos dispõem de quatro componentes principais: um reservatório, um dispositivo de aquecimento, uma bateria e o bocal para inalar. O reservatório contém uma solução líquida de nicotina e diversos aromas agradáveis ao paladar infantil: chocolate, maçã, framboesa, além de mentol, para dar sensação de frescor.

Os eletrônicos foram lançados com o pretexto de que seriam indicados para fumantes interessados em vencer a dependência de nicotina. Veja se faz sentido, prezado leitor: uma indústria que acumulou lucros astronômicos com a venda de cigarros para dependentes de nicotina fabrica um dispositivo para inalar nicotina com a finalidade de reduzir o número de fumantes. Haja ingenuidade para acreditar nessa gente.

Tal ação jamais foi comprovada em estudos científicos. Em compensação, o sucesso de vendas para o público infanto-juvenil foi avassalador. A apresentação na forma de pen drives e canetas e a crença de que se tratava de uma versão moderna do cigarro, livre do mau cheiro e dos malefícios associados a ele, provocaram uma explosão no consumo.

As crianças e os adolescentes de hoje fumam os eletrônicos —como eu e os do meu tempo fumávamos os cigarros convencionais— sem ter ideia do mal que fazem. Para eles, como para nós, é apenas uma fumaça inócua que nos ajuda a parecer adultos.

Acontece que os eletrônicos contêm doses altas de nicotina, droga que provoca a mais escravizadora das dependências químicas. Já disse várias vezes nesta coluna que é mais fácil largar o crack do que a nicotina, como aprendi nas cadeias. Crianças e adolescentes que começam a fumar a nicotina presente nos eletrônicos não conseguem parar.

O esforço de décadas de combate ao fumo está sendo atirado no lixo: criamos uma nova geração de dependentes de nicotina que não fumaria cigarros convencionais.

Neste momento, a indústria movimenta seu lobby de aluguel para que a Anvisa aprove os eletrônicos. Com a desculpa de trazer para o controle das autoridades sanitárias a qualidade dos produtos nocivos que comercializam, o que pretendem é conseguir autorização da agência para disseminar a dependência de nicotina no meio da criançada.

Exatamente o mesmo crime continuado cometido contra a minha geração e as que me antecederam.

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