Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella
Descrição de chapéu drogas Cracolândia

Vai por mim, é mais fácil largar do vício em crack do que do cigarro

O fumante pode ser trancado na solitária ou levado ao fim do mundo, mas as garras da abstinência de nicotina cairão nele

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É mais fácil largar do crack do que do cigarro. Vai por mim, falo com conhecimento: fui dependente de nicotina dos 17 aos 36 anos e convivo semanalmente com usuários de crack desde 1992, quando essa praga invadiu o antigo Carandiru.

Inalada, injetada na veia ou fumada sob a forma de crack, a cocaína provoca adicção.

Seu efeito, entretanto, depende da via de administração. Ao ser inalada, é absorvida pela mucosa das vias aéreas superiores e leva cerca de dez minutos para atingir o pico de ação nos neurônios cerebrais, para depois passar a ser eliminada muito lentamente.

Injetada na veia, cai na circulação venosa, chega no lado direito do coração, de onde vai para os pulmões e volta para o lado esquerdo do coração que a impulsiona ao longo da aorta para todas as partes do corpo, inclusive para o cérebro, onde exercerá sua ação de caráter psicoativo.

O efeito é muito mais rápido. Em segundos o usuário sente o impacto cerebral —daí o nome popular de "baque".

Fumada nas pedras de crack, chega mais depressa ao cérebro do que quando injetada na veia, porque cai direto no pulmão sem perder muito tempo na circulação venosa.

Nos presídios, o crack expulsou o baque na veia: era mais barato, dispensava a parafernália de seringas e agulhas, além de evitar a transmissão de Aids, hepatites B e C e outras infecções do tipo.

A comodidade do uso, o preço e a rapidez do efeito psicoativo disseminaram o crack feito epidemia pelas cidades brasileiras. O grande número de usuários possibilitou ganhos em escala que trouxeram fortunas para os grandes núcleos do tráfico de drogas.

Vemos um homem deitado com as mãos na cabeça em posição fetal e atitude de desespero. Ele está sendo cercado pela fumaça de um cigarro gigantesco que invade a cela onde ele se encontra através das grades. A cela é ao mesmo tempo prisão e proteção contra esse cigarro gigante, mas a fumaça do cigarro o alcança com mã-os gigantes de fumaça que o oprimem invadindo todo o seu corpo e cabeça. O olhar do homem é de raiva em direção ao cigarro.
Ilustração de Líbero Malavoglia para coluna de Dráuzio Varella, 29.jun.2023 - Líbero Malavoglia

Depois da tragédia conhecida como massacre do Carandiru, no rescaldo da qual uma das facções de criminosos assumiu o poder nas prisões de São Paulo e de outros estados, seus líderes entenderam que as disputas, as brigas e as mortes causadas por elas atrapalhavam os negócios e decidiram proibir o crack, nas prisões sob sua jurisdição.

Como por encanto, ele desapareceu das cadeias. Nunca imaginei que isso pudesse acontecer. No mundo do crime, no entanto, as leis não têm a fragilidade das nossas: foi pego fumando pedra na cela apanha feito gente grande; traficou no ambiente interno é condenado à morte.

Hoje, atendo no CDP do Belém, um dos centros de detenção provisória da capital paulista. Entre outros, são encaminhados para lá os que cometem pequenos crimes na cracolândia.

Entre os que atendi nesta semana, havia três presos em flagrante naquela área. Todos tinham sarna e furúnculos em várias partes do corpo. Moravam nas ruas daquela região havia 17 anos, 12 anos e oito anos, respectivamente.

Lá os usuários passam os dias e as noites em busca de pedras para fumar. A compulsão é de tal ordem, que nada mais lhes interessa. Passam os dias jogados na sarjeta, no meio do lixo, sem forças para resistir à ditadura imposta pela droga.

Estavam no CDP havia mais de um mês, sem fumar nem uma pedra sequer. Os três, no entanto, fumavam "arapiraca", um tipo de fumo a granel que é o cigarro mais barato e popular atrás das grades.

Quando lhes perguntei se tinham sofrido com a abstinência do crack, os três responderam que não. Um deles resumiu bem: "Sofrimento não. Se não tem, não tem".

Apesar da miséria em que se encontravam, nenhum deles tinha conseguido parar de fumar cigarro. "É mais fácil largar do cigarro ou do crack?", perguntei. Responderam em uníssono: "Do crack".

Em mais de 30 anos, devo ter repetido essa pergunta centenas de vezes, nunca ouvi um usuário dizer que é mais fácil largar do cigarro.

O dependente de cocaína consegue manter a abstinência, desde que não enfrente três situações: ver a droga, chegar perto de alguém sob o efeito dela ou voltar ao local em que a consumia.

Nessas eventualidades, a ansiedade deixa as mãos geladas e trêmulas, surgem náuseas, cólicas intestinais que o forçam a correr para o banheiro, o coração dispara e ele acha que vai ter um infarto. É esse pânico que leva à recaída.

Para evitar essas crises quem trata de usuários de cocaína considera fundamental afastá-los das pessoas e dos lugares que frequentavam. Ficar longe é a saída. Como afirmam alguns estudiosos: "Num certo sentido, a dependência de cocaína é um mito".

Contra o cigarro não há defesa. O fumante pode ser trancado numa solitária ou levado para o fim do mundo, não adianta. As garras da abstinência de nicotina cairão sobre ele, esteja onde estiver.

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