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Epitáfio para um bar que acolhia equinos bípedes e elegia aos seus garçons

O Hipódromo vai fechar, e isso muda quase tudo pra uma dúzia de pós-adolescentes como eu

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“No Alcorão não há camelos”, diz o Borges, e isso, pra ele, prova que se trata de um livro árabe. Qualquer estrangeiro teria enchido a história de camelos. “Maomé, como árabe, não tinha por que saber que camelos eram essencialmente árabes. Estava tranquilo. Sabia que podia ser árabe sem camelos.”

O Hipódromo vai fechar. Isso não muda quase nada pra quase ninguém, mas muda quase tudo pra uma dúzia de pós-adolescentes como eu. Aqui na Guanabara não chamamos de hipódromo o lugar onde trabalha o jóquei —lugar este que chamamos de Jockey— mas o bar perto do hipódromo, na praça do Jockey —praça esta jamais frequentada por algum jóquei.

O bar abriu em 1945, dizia o letreiro, e estava tranquilo. “Sabia que podia ser um hipódromo sem cavalos.” Acolhia todos os tipos de equinos bípedes: poetas, jornalistas, comediantes, adolescentes e divorciados em geral, ou seja: todos aqueles que não tinham senso estético nem paladar apurado e que, por não terem encontrado seu lugar no mundo, ali encontravam consolo num chope aguadinho, numa fatia de pizza com ketchup e num garçom que sabia seu nome e o da sua família toda.

Cada garçom tinha sua expertise e seus clientes preferenciais. Sorriso trazia no olhar ao te ver a alegria de uma criança que vê seus pais chegando à creche, enquanto João de Deus, o Boi, trazia na testa o maço de cigarro equilibrado nas sobrancelhas, entre outros truques impagáveis.

Lacerda tinha a memória mais prodigiosa e o humor mais veloz —o melhor garçom do mundo segundo qualquer concurso que preste. Existia ali uma tecnologia do serviço avançadíssima e que mantinha o bar aberto apesar dele mesmo.

A luz fria, o cardápio imutável, o teto de espuma, nas paredes a foto de um pedaço de carne crua no espeto com os dizeres “esta é a churrasqueira do Hipódromo”. Aquilo era pra ser uma publicidade, mas soava como uma denúncia.

Em seu lugar, abrirá uma filial do Brewteco —espécie de importação carioca da ideia que um paulista faz do que é um botequim carioca. Não reclamo: a imitação da imitação supera muitas vezes o original. A comida será melhor, o chope nem se fala. Mas falta alma. Não faltam camelos. O botequim
carioca dos paulistas está mais pra Aladim que pra Alcorão.

A prova: demitiram os garçons. Rezo pra que todos apareçam recontratados. O tal do novo normal tem muito a aprender com o velho. Prometo que, se assim for, estarei lá (assim que encontrarem a vacina, que não sou doido de compartilhar perdigoto com desconhecido).

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