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Descrição de chapéu STF

A vida é montanha-russa, e só se pensa em 2022, mas ainda não superei 2018

Um passarinho surgiu em casa, mas no Brasil atual é impossível escrever sobre pássaros

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Sempre quis escrever sobre passarinhos que pousassem na janela. Nunca escrevi por falta de passarinhos. Até que no começo de março me deparo com um filhote agonizando entre as patas da Yoko, minha gata cinza. "Êêê, pshh, larga isso já!" O bichinho ainda vive.

Corremos pra veterinária, levando o pássaro em uma caixa de sapatos. Doutora Tatiana isenta a gata: não tem perfuração, e o fêmur pode ter sido luxado pela queda do ninho.

Ela confirma no WhatsApp com biólogos: é um sanhaço-cinzento, que deve ficar esverdeado quando adulto. Chamamos de Carioca —é o aniversário do Rio e um nome neutro (é impossível distinguir o gênero dos sanhaços filhotes).

“O Carioca vai ficar bem”, diz a veterinária, e a frase, com todos os seus sentidos, era tudo o que precisava ouvir. “Não sei se consegue voltar pra natureza. A mãe pode rejeitar. Talvez tenham que cuidar dele pra sempre.” Os olhos da Marieta, minha filha de três anos, brilham.

Cá estávamos nós cuidando de Carioca como se fosse um príncipe (ou princesa) e eu já arquitetava as mil metáforas que meu pássare não binário poderia render sobre esse país que agoniza e já não pode voltar pra natureza. Um cronista vê o mundo como um extrativista, só pensa nas crônicas que conseguirá extrair dos sofrimentos que vê por aí. Encontramos seu ninho sobre o ar-condicionado. Colocamos o bicho lá e três vezes por dia aplicamos a papinha líquida.

O garoto ia bem quando Fachin me inventa de absolver Lula, e em seguida Gilmar, de condenar Moro. Um vizinho põe pra tocar “Lula lá”, enquanto outro berra “fora, Bolsonaro”, e um terceiro berra “Lula na veia/ Moro na cadeia”. Caso o leitor não esteja ouvindo esse tipo de coisa, convido-o a conhecer o aprazível bairro das Laranjeiras.

Impossível, no Brasil de hoje, escrever sobre pássaros. Só se pensa em 2022 —e ainda nem processei 2018. Continuo revoltado com o golpe de 2016, sigo comovido pela eleição de 2002 e atravessado pelas quase 2.000 mortes por dia em 2021 —isso sem contar os pássaros.

Falando nisso: na terceira papinha do dia, vimos o ninho vazio. Carioca morreu. Deve ter caído, dessa vez na rua. Já estava preparando a crônica fúnebre quando ouço gritos de alegria. Encontraram um novo ninho, no beiral, com três filhotes. Carioca, tenho quase certeza, é um dos três. O mais gordinho. E voltou para casa. Que montanha-russa, a vida.

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