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Cancelaram o incancelável e não teve Carnaval, apesar do nosso abismo natural

Profissionais do espetáculo têm um pacto maior com a sociedade do que com o próprio bolso

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​Passei os últimos 20 anos da vida tentando tirar as pessoas de casa. Um ator consiste num ser que está sempre querendo convencer você a ver uma peça —que ele costuma chamar de espetáculo (peça é a dos outros, espetáculo é a nossa).

Lá, no teatro, se tudo der certo, ele transportará você a outros lugares —literal ou figurativamente. Se você não der sorte e a peça for itinerante, ele não deixará você sentado em paz, mas mesmo que seja num palco: uma peça, quando funciona, leva você pra outro espaço-tempo. Teatro é transporte coletivo, e só existe na aglomeração —um bloco de Carnaval, só que com muito menos gente.

Tinha muito medo de o Carnaval acontecer. Já cancelaram Copas e Olimpíadas —nunca tinham conseguido cancelar um Carnaval. Já tinham tentado mil vezes, com decretos, proibições, parcerias com a Schincariol. Mas um Carnaval não se proíbe, porque ele se alimenta da proibição. Já aconteceu debaixo de penúria, porrada, chumbo e temporal.

“País festeja à beira do abismo”, dizia a The Economist, espantada que haveria Carnaval em 2016, “mesmo com a crise”. Não entenderam nada: o abismo é nosso habitat natural. Quanto maior o fosso, maior a necessidade do Carnaval.

E, no entanto, podemos dizer tranquilamente: não teve Carnaval —apesar do abismo. Teve aglomerações no Leblon e festas de música eletrônica na praia, mas isso não tem nada a ver com Carnaval. Não teve cortejo, nem trio, nem desfile.

E não foi por causa de decreto, mas por causa daqueles que mais perderam com o cancelamento: os trabalhadores do Carnaval, que dependem do evento —ainda mais que os foliões. Não vi nenhuma classe mais unida quanto à necessidade de ficar em casa do que aquela que vive de aglomerar.

Dependemos da multidão para trabalhar. Mas preferimos o desemprego à promoção da morte. Os profissionais do espetáculo provaram que têm um pacto maior com a sociedade do que com o próprio bolso. Sabem que sua profissão existe somente para celebrar a vida —e toda aglomeração, enquanto não houver vacina para todos, é fúnebre.

Acreditem: não tem nada menos carismático e mais esquisito para um de nós do que pedir: fica em casa. Parece um convite à inação, à passividade, à letargia —mas é a única forma possível de celebrar a vida. Se você puder, faça como os profissionais que vivem de levar gente para rua: fique em casa.

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