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Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'É impossível fazer comédia e atender a todas as pautas', diz Marcelo Médici

Ator e dramaturgo comemora 20 anos do espetáculo 'Cada um Com Seus Pobrema', peça em que fica no palco o tempo todo, sozinho, interpretando oito personagens criados por ele

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O ator Marcelo Médici durante entrevista à Folha, em São Paulo Marlene Bergamo/Folhapress

"Me edita que eu falo muito", diz Marcelo Médici assim que chega, pontualmente, para esta entrevista. O ator e dramaturgo —título que ele titubeia em aceitar, mas que, enfim, é o nome que se dá a quem escreve peças de teatro— está em cartaz com o monólogo "Cada Um Com Seus Pobrema". A temporada curtíssima é no palco do teatro Procópio Ferreira, até o dia 26 deste mês.

Se eu fosse você, corria lá na porta do teatro e dava um jeito de entrar. Não é toda hora que uma pessoa sozinha no palco consegue fazer tanta gente rir tanto, e de um jeito tão catártico.

A peça foi remontada para comemorar os 20 anos de sua existência. Lançada em 2004, "Cada Um", como Marcelo chama seu trabalho mais marcante, foi gerado a partir de personagens que o ator criou para o humorístico "Terça Insana", um projeto que surgiu em 2001, ideia da atriz e comediante Grace Gianoukas, em que vários atores faziam esquetes individuais de até dez minutos, e que foi um sucesso estrondoso.

O ator Marcelo Médici durante entrevista à Folha, em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

"Foram uns amigos meus que insistiram para eu fazer um espetáculo solo, isso nem passava pela minha cabeça. Eu já tinha alguns personagens, como o Mico Leão Dourado e o Sanderson, o corintiano, pelo qual ganhei um prêmio no Multishow em 1998, mas nunca me considerei um dramaturgo", diz Médici.

"Aí, mil crises, porque tinha que criar o resto todo e dar um jeito de juntar os personagens, que não têm nada a ver um com o outro. Então, junto com o Ricardo Rathsam, que é coautor e dirige o espetáculo, decidi que a melhor saída seria falar da minha verdade, que é a vida de um ator de teatro tentando sobreviver do seu trabalho."

Só que não estamos falando de um ator normal aqui, um mero trabalhador do ofício de interpretar personagens, tarefa muito nobre e dificílima, imagino. Mas, neste caso específico, este é um gênio da comédia e do improviso. Que criou um espetáculo em que o tal ator de teatro que tenta sobreviver do seu trabalho está apresentando uma montagem musical de "Hamlet" na língua do P. Sim, você leu certo. "Hamlet". Musical. Na língua do P.

Mas o ator/personagem trava em cena, não consegue continuar a peça, bem no final do solilóquio fundamental do clássico de Shakespeare, aquele que começa com "ser ou não ser, eis a questão". Arrasado, decide fazer um sincerão com a plateia e passa a contar as dificuldades de viver daquela arte. E aí começa o louco desfile de personagens inacreditáveis, cada um com uma voz, um jeito de corpo, uma maneira de se movimentar e um raciocínio diferente.

Além dos já citados Sanderson e o Mico Leão Dourado, Marcelo encarna uma faxineira recém-chegada do Recife, que foge de um trabalho em um apartamento em Higienópolis depois de um encontro sinistro no elevador do prédio em que uma vizinha lhe roga uma praga.

Tem o irmão surfista e cabeça oca do ator, que sem fazer nenhum esforço para isso acaba vencendo um reality show e virando astro de Hollywood. A Smurfete é até difícil de sintetizar, de tão absurda que é a situação. Minha preferida, a Mãe Jatira, uma médium que se comunica com os espíritos dos personagens da Disney, já virou clássico no YouTube.

"O jeito de falar da Mãe Jatira é uma homenagem a uma das maiores atrizes que a gente já teve, a Miriam Muniz [1931-2004]. Ela sabia que eu a imitava e ela achava ótimo, pedia pra eu fazer pra ela ver quando a gente se encontrava e dizia: ‘Que bom que você está me imitando bem, fiquei muito feliz’", conta o ator, fazendo a voz da atriz que virou sua personagem.

"Mas a estrela desta temporada é a menos politicamente correta de todos, a tia Penha, uma apresentadora infantil que odeia crianças, fala coisas horríveis para a plateia", conta o intérprete, que se inspirou em Xuxa para este trecho. "A Xuxa me disse que já viu umas cenas da tia Penha no YouTube e adorou, morreu de rir", diz. "E é ela que sacode mais a plateia hoje em dia, não sei o porquê."

"Cada Um Com Seus Pobrema" sempre foi uma peça muito engraçada, desde que foi lançada. Não é por outro motivo que marcou a carreira de Marcelo Médici para sempre, lançou o nome dele como um comediante brilhante, que depois disso fez mil outros trabalhos e continua fazendo. É como "Like a Prayer", da Madonna, ou "Yesterday", dos Beatles. A obra fundamental que mostra, de uma forma concisa, tudo de que aquele artista é capaz.

Mas algo aconteceu com o mundo entre 2004 e 2024, e o que já era muito engraçado passou a ser catártico. Marcelo Médici não faz só seu público rir, e, sim, ter ataques de riso, como só costuma acontecer de maneira espontânea. Sabe quando você dá um fora que não podia dar de jeito nenhum? Ou quando alguém comete uma gafe que revela algo que não podia ser revelado? A sensação que dá, vendo a peça hoje em dia, é que aquilo não devia estar acontecendo, muito menos ao vivo.

Não é que seja um humor 100% politicamente incorreto, não é esse o caso. Mas também não é que Marcelo deixe de se arriscar. "Houve uma mudança de comportamento muito grande nesses vinte últimos anos, e a comédia é sempre muito punida nesses momentos", afirma.

"As pessoas perderam um pouco a capacidade de elaboração do que é a comédia. A comédia pode fazer críticas, pode chamar a atenção para um problema, pode ser ácida, pode ser irônica. Isso não quer dizer que não estamos respeitando as mudanças sociais ou debochando de tudo o tempo todo."

Marcelo conta que, a cada vez que remonta "Cada Um", passa por uma "sessão de tortura", como ele chama o ritual de se assistir, em vídeo. "Eu odeio assistir o vídeo da peça", ele diz, sério. E até isso é engraçado.

"Eu tomo esse cuidado para ver se algo ficou horrivelmente ofensivo, e minha surpresa é sempre como não tenho que mudar quase nada do original", afirma. "Eu sou a favor de a gente refletir sobre o que faz e se atualizar, mas também vejo muita hipocrisia nessa onda, sabe? Por WhatsApp e em outras redes sociais é todo mundo bem mais liberal, mas no teatro tem essa convenção de que não pode ofender ninguém. Não concordo com isso, a gente tem o dever de não deixar essa coisa se estabilizar", afirma.

"É impossível fazer comédia e atender a todas as pautas ao mesmo tempo." Uma pauta, convenção, ou sei lá o nome que se dá para o terror de grande parte do público de teatro, o ator que mexe com a plateia, é uma que Marcelo ignora solenemente. Na segunda metade do espetáculo, com o público já frouxo na cadeira de tanto rir, eis que acontece o momento de pânico.

Na pele da vidente Mãe Jatira, Marcelo pede que a luz da plateia seja acesa e desce do palco. Fala com algumas pessoas, faz perguntas e comentários e, então, escolhe alguém para subir no palco e fazer uma participação especial. "Eu morro se tiver em uma peça e o ator descer do palco", confessa o próprio.

"Mas essa é uma tradição do Teatro de Revista, que sempre existiu. E eu sigo algumas regras fundamentais, por exemplo, nunca toco em ninguém e jamais forço alguém a participar", diz ele. "E eu fico observando as pessoas do palco, vejo quem está mais receptivo. Às vezes, tem gente adorando, mas que eu percebo que não vai gostar da interação e respeito isso", promete ele.

O ator Marcelo Médici durante entrevista à Folha, em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

Pergunto se tem algum truque para deixar claro para o ator que você não está a fim da brincadeira, por exemplo desviar o olhar na hora em que ele desce do palco. "Desviar o olhar é a maior roubada, você só vai atrair o ator", ri o desgramado.

"Mas eu vou dar aqui a dica de um milhão, que é muito simples", conta. "Basta cruzar os braços. Eu nunca li nada sobre isso, mas aprendi isso ao longo desses 20 anos. É uma linguagem corporal muito efetiva. Comigo é garantido, ninguém vai ser abordado de braços cruzados."

E foi observando seu público que Marcelo Médici acabou tomando horror de uma colega de profissão. "Quando eu estreei no Rio, em 2006, estava fazendo a novela ‘Belíssima’, na TV Globo, então quase toda noite tinha gente famosa na plateia, acabei me acostumando com isso", lembra.

"Uma noite, olhei para a plateia e tinha uma atriz me olhando ‘assim’", conta, fazendo uma cara de tédio absoluto, com a mão no queixo. "Ela foi para entender do que se tratava aquele hype, mas não achou nada engraçado e não fez a mínima questão de disfarçar", conta. "No final, ela foi falar com o produtor do espetáculo e disse: ‘Por que você está produzindo essa peça?’", lembra Médici.

"Odeio essa mulher até hoje. É uma ótima atriz, do primeiro time, mas eu odeio ela." Daí, né, claro, quando acabou a entrevista, fui apurar quem era a sujeita. Ele contou, mas pediu off. E não se quebra off. Então, lamento, mas essa é uma informação que vou ter que levar para o túmulo. Não necessariamente o meu.

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