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Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

Reconhecimento de Luiz Zerbini acompanha virada vegetal nas artes e na filosofia

Plantas passaram a ser modelo na procura de superação de impasses contemporâneos

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O lançamento em breve, pela Fundação Cartier, do deslumbrante livrão com as monotipias de Luiz Zerbini é consagração para a antiga relação entre esse pintor brasileiro e o reino vegetal. Tive a sorte de acompanhar de perto a evolução desse trabalho por conta de nossa amizade desde os anos 1980. Seu reconhecimento internacional me alegra também por ser sinal de que ainda há áreas em que o Brasil não virou pária no mundo.

Porém, sinto igualmente —e isso só enriquece tudo— que há uma sincronicidade entre essa recepção calorosa de determinados aspectos da obra de Luiz Zerbini com a recente mudança na maneira com a qual o pensamento humano encara as plantas.

A curadora portuguesa Sofia Lemos nomeia uma virada vegetal nas artes contemporâneas. Harvard, nesta primavera (no hemisfério Norte), promove o curso Humanidades vegetais, lecionado por Carrie Lambert-Beatty, também editora da revista October. Muita coisa pipocando ao mesmo tempo. Meu objetivo é falar aqui apenas de dois filósofos na vanguarda desse movimento transdisciplinar: Emanuele Coccia e Michael Marder.

O primeiro deles, Emanuele Coccia, assina um dos ensaios publicados no livro das monotipias de Luiz Zerbini. Algumas de suas principais obras já foram lançadas no Brasil: “A Vida Sensível” e “A Vida das Plantas”, pela Cultura e Barbárie, e “Metamorfoses”, pela Dantes, duas editoras muito valentes.

As primeiras palavras de “A Vida das Plantas” denunciam: “Pouco falamos delas e mal sabemos seus nomes. A filosofia as negligenciou desde sempre, com desprezo mais do que por distração”.

O ensaio sobre as monotipias de Luiz Zerbini revela que, nas artes, a relação com as plantas foi diferente: as plantas atuaram como “modelo definitivo” para a contemplação da beleza. Ou foram elas, com sua “exuberância barroca”, que ensinaram à humanidade a relação com o mundo que chamamos de arte. Sua lição: como transformar o mundo através da estética.

A arte de Luiz Zerbini, segundo Emanuele Coccia, vai além, muito além. As plantas se tornam coautoras das pinturas. Deixam de ser objetos de contemplação. Luiz Zerbini “delega seu papel, sua agência, seu status de artista para outras espécies”. As plantas podem finalmente nos mostrar seus “sonhos secretos”.

(Conselho meu: contemple cada monotipia ouvindo “Journey Through the Secret Life of Plants”, álbum que Stevie Wonder lançou em 1979, aquele que começa com a criação da Terra, passa pelo Eclesiastes, percorre todo o Universo e tem faixas chamadas “Power Flower” e “Come Back as a Flower”.)

Os momentos que mais me empolgam no livro “A Vida das Plantas” são aqueles em que Emanuele Coccia desenvolve o pensamento de Lorenz Oken, um discípulo de Goethe. Oken afirmou: “O que é o sexo nas plantas é o cérebro no animal”. Parece radical, mas Coccia leva essas palavras para um extremo encantador: “A razão é a flor do cosmos”. Ou: “Tudo que é racional é sexual”. E vice-versa.

É preciso lembrar: os atos sexuais das plantas envolvem seres de outras espécies, atraídos por suas belezas. A razão deixa de ser aquela árida busca pela pureza de essências eternas, cada uma no seu quadrado: “Não é mais a realidade do idêntico, do imutável, do mesmo; é a força e a estrutura que obriga todas as coisas a se misturarem a seus semelhantes pela via do dessemelhante”. A razão cria “novas fórmulas de mistura”, impondo uma “mestiçagem cósmica”. Suas armas: “Risco, invenção, experimentação”.

Esse esboço de política da além-identidade aparece também no pensamento de Michael Marder. Recomendo sua palestra “Sobre movimentos vegetais na política”, proferida na Serpentine Gallery, em 2019, e disponível no YouTube.

As plantas, além de artistas libertinas, passam a ser também nossas professoras na procura de superação de vários impasses contemporâneos. Marder é bem enfático: as plantas não se metamorfoseiam, elas são metamorfose, ocupando assim o polo oposto dos minerais, esse reino do fixo. Elas desenvolvem estratégias sempre renovadas para se equilibrar entre a escuridão do solo podre (adubo é feito do quê?) e a transparência da luz do sol.

Outro vídeo imperdível com Michael Marder: a entrevista para Sofia Lemos falando de Santa Hildegarda de Bingen e sua oposição entre os conceitos de “ariditas”, que produz desertos, e “viriditas”, a força regenerativa verde, que pode curar tudo.

Em suas orações, Maria seria “o ramo mais verde” e Jesus a flor nesse ramo. Poderia ser uma heresia, mas quem nos ensinou isso é uma santa. E, como as plantas parceiras da arte de Luiz Zerbini, Santa Hildegarda também nos ensina este segredo: no princípio, o mundo era verdejante.

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