Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Hermano Vianna

Na pandemia, não há solução uniforme para realidades diferentes

Grupo de pesquisa mostra que nunca se deve esquecer da complexidade

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Repetindo o óbvio: na pandemia, a humanidade passou também a frequentar intensivão compulsório sobre relações entre ciências e políticas, incluindo política acadêmica. De repente, até os métodos de revisão dos artigos do New England Journal of Medicine são discutidos em notícias cotidianas.

Ficaram claras, para qualquer pessoa preocupada com saúde, as diferenças brutais entre as temporalidades das pesquisas científicas e das decisões governamentais. Prato cheio, transbordante, para estudos de cientistas sociais em futuro não tão remoto.

Haverá abundante quantidade de dados para análises comparativas. Cada governo, de cada país ou mesmo de cidades vizinhas, inventou relacionamentos diferentes com produtores de conhecimento científico.

No Brasil, um caso fascinante a ser analisado será o do projeto ModCovid19, um “grupo de pesquisa com trabalhos para combater o novo coronavírus” que reúne uma equipe multidisciplinar —juntando USP, Unicamp, IMPA, UFAL e FGV-Rio— e que já teve oportunidade de colaborar com governos como o estadual de São Paulo ou a Prefeitura de Maragogi, em Alagoas.

Um dos conceitos centrais dos trabalhos do ModCovid19 é o de complexidade. Não há soluções uniformes para realidades tão diferentes. Na emergência, devemos é claro respeitar regras como as da OMS, que determinam distanciamento ou orientam fechamento do comércio.

Porém, com análises mais detalhadas e geolocalizadas, que utilizam as descobertas recentes das matemáticas de sistemas dinâmicos para construir seus modelos, podemos prever com mais acurácia o que funciona melhor em cada situação específica.

Muitas vezes a medida aparentemente mais sensata revela-se totalmente equivocada ou inútil. Por exemplo: Maragogi pensou em fechar sua tradicional feira livre, acreditando que ali estava um foco do novo coronavírus. O ModCovid19 estudou a cidade com tudo que tinha direito: drones sobrevoando barracas de macaxeira, processamento em supercomputador da USP, big data com informações anonimizadas sobre quase toda a população do município.

Foi criado um modelo urbano a partir de equações mais cabeludas do que as que movem jogos como “SimCity”, “Cities: Skylines” ou mesmo o ainda influente “Civilization”, de Sid Meier, possibilitando o “desligamento” de bairros, setores da economia etc.

Pois o modelo de Maragogi revelou que a feira desligada não tinha nenhum influência nas taxas de Covid-19. O resultado era tão surpreendente que foi feita nova simulação, tornando cada pessoa da feira dez vezes mais infecciosa. Mesmo resultado. Fechar a feira não iria mudar nada ou até aumentaria o número de casos com mais compras em lojas com inadequada ventilação.

É preciso nunca se esquecer da complexidade: por mais que seja meu desejo, eu que adoro feiras nordestinas, esse resultado não pode virar regra geral. Outras feiras livres, de cidades diferentes, podem sim precisar ser fechadas.

Tudo depende de inúmeras variáveis locais. É preciso analisar as especificidades de cada caso. Isso não se aplica apenas para decisões de “lockdown”. Vale também para estratégias de aplicação sem desperdício de testes e da, assim espero, futura vacinação.

Aprendi tudo isso e muito mais em uma conversa recente com Tiago Pereira da Silva, matemático da equipe do ModCovid19, que tem um dos trabalhos mais originais no mundo sobre redes complexas e sistemas dinâmicos não lineares, com passagens brilhantes por instituições como o Imperial College de Londres e apoio de R$ 1 milhão do Instituto Serrapilheira para sua pesquisa na USP São Carlos.

Seu interesse por epidemias não é recente, como prova sua palestra sobre isolamento no 32º Colóquio Brasileiro de Matemática, de 2019, disponível na internet. Hoje seu conteúdo é profético, inclusive com tosses bem “sintomáticas” na plateia.

Sua trajetória acadêmica só seria previsível por equações com não linearidade total. Nasceu e foi criado na favela da Vila Ana, em Jundiaí. Nunca se destacou na escola. Era considerado tapado por alguns familiares. Achava que estava com a vida ganha quando fez mecânica geral no Senai e conseguiu emprego para consertar bombas hidráulicas. Vivia entre o sertanejo raiz e a rebelião do Metallica.

O “efeito borboleta” que mudou sua vida foi ler “Platão”, livro da coleção Os Pensadores, presente do pai da namorada. Junto com o conselho de uma professora para fazer vestibular, mesmo com notas medíocres. Lição: nunca desistir de ninguém. Nunca acreditar nas primeiras impressões. O mundo e as gentes são complexas.

Citando o mais óbvio de Rosa: as situações e as pessoas “não foram terminadas —mas que elas vão sempre mudando.” Bom assim.

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