Exposição em Paris transforma 'inteligência verde' da floresta em arte

Mostra na Fundação Cartier traz aspecto simbólico e metafísico do mundo dos vegetais

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Paris

Uma flor rompeu o asfalto. Na verdade, não uma flor, como a do poema de Drummond, mas árvores —uma profusão delas— erguem-se real e metaforicamente do chão concretado da Fundação Cartier, em Paris, numa exposição que escala cientistas, intelectuais e artistas (mais de dez deles, brasileiros) para devolver ao mundo vegetal seus dias de nobreza.

Uma selva de desenhos, gravuras, pinturas, vídeos, fotografias e instalações convida o visitante a se embrenhar no universo das plantas, ora ressaltando sua exuberância, ora lembrando que ele está sob ataque como nunca antes —seja pela cobiça extrativista, seja pela negligência (ou entreguismo?) de governos.

Um dos curadores da mostra, o antropólogo Bruce Albert destaca os perigos do presente, mas lembra que a diminuição do valor simbólico das árvores é um processo longo, ligado ao que se convencionou chamar de antropoceno.

“Há séculos pensamos os vegetais como inferiores, mera matéria-prima”, diz. “Vêm desse desprezo a expressão vida vegetativa e a associação dos povos da floresta a selvagens, em oposição a nós, civilizados.”

Há cerca de 20 anos, diz Albert, começaram a surgir pesquisas que mostravam a capacidade de comunicação das árvores pelas raízes ou por componentes químicos presentes no ar, além da faculdade de memorizar e de sentir.

Um dos porta-estandartes dessa “inteligência verde”, o botânico italiano Stefano Mancuso está na mostra com uma instalação que, a partir de sensores, amplifica a “voz” de plantas. Fundador do Laboratório Internacional de Neurobiologia Vegetal, em Florença, ele dá aqui verniz artístico a uma investigação científica intrincada.

No mesmo trevo se encontra o trabalho de seu colega de ofício, o francês Francis Hallé, especialista em copas de espécies tropicais que expõe desenhos compilados em cadernetas de viagem ao​ longo de mais de 50 anos.  

Ainda na fronteira das ciências com o gesto artístico deliberado reside o inventário vegetal realizado pelos arquitetos italianos Cesare Leonardi e Franca Stagi. Durante dez anos, a dupla registrou microvariações de cor e sombra de árvores ao longo das estações para servir de referência a projetos de parques.

Entre os brasileiros que participam da exposição, o paulista Luiz Zerbini ocupa a sala de entrada com uma instalação onde uma figueira ascende no meio de um quadrado onde vitrines deixam ver folhas, sementes, conchas, insetos mas também garrafas de plástico, notas de dinheiro e componentes eletrônicos.

Essa “selva das cidades”, em que natural e artificial se digladiam, surge nas telas de grandes dimensões que ladeiam a figueira, atravessadas por um enigma insolúvel —trata-se de radiografar a marca humana sobre o verde ou o “troco” do mundo vegetal, que infiltra suas raízes, galhos e esplendor através de teto e paredes?

Zerbini não resolve a charada. “Um inglês me disse que achava essa série de quadros surrealista. Após ir ao Brasil, viu que era realismo puro.”

Na mesma sala que o paulista estão desenhos assinados por três artistas ianomâmis —para o curador Albert, os índios são a vanguarda do pensamento a favor do qual a exposição advoga: o da reabilitação dos conhecimentos ligados à flora e à fauna.

Lá estão representações de folhas, pássaros, macacos, árvores frutíferas, além de rituais e espíritos xamânicos —a floresta como teatro metafísico.

No espaço adjacente, utensílios com cabos biomórficos do mineiro Afonso Tostes voltam a apagar os limites entre humano e vegetal. Ele moldou os cabos de madeira a sua imagem ou com a ideia de imprimir neles a lembrança da rugosidade e da sinuosidade da árvore de que foram tirados?

“Qual é o ponto de conciliação entre nossas necessidades e o desmatamento, entre corpo humano e vegetal?”, responde perguntando o artista.

No subsolo, o fotógrafo Cássio Vasconcellos reedita, em “Viagem Pitoresca pelo Brasil”, incursões de artistas como Rugendas (1802-58) e Debret (1768-1848) pelas matas.

Com um tratamento que lhes dá a aparência de gravuras, as imagens emanam nostalgia de um verde intocado, tentam reproduzir o assombro do primeiro contato com a exuberância dos trópicos.

A série foi feita na floresta da Tijuca, no Rio, destruída por plantações de cana e café, mas replantada a partir de 1871 a mando de d. Pedro 2º quando de uma crise de abastecimento de água na cidade.

A mesma sorte não tiveram outras florestas tropicais, mostra o vídeo “Exit”, dos arquitetos americanos Diller Scofidio + Renfro. O filme emparelha a destruição de manchas verdes em Brasil, Camarões e Indonésia ao desaparecimento de línguas —230 desde 1950, 2.700 em perigo hoje. A “biodiversidade cultural” está na linha de tiro, alertam.

A flor furou o asfalto, mas, a julgar pelo noticiário, talvez não consiga repetir o poema de Drummond, vencendo o tédio, o nojo e o ódio. 

Nós, As Árvores

  • Quando Até 10/11
  • Onde Fundação Cartier, em Paris
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