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Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

Texto de Narloch relativiza o horror da escravidão

Não podemos tolerar o racismo sob o manto do pluralismo de ideias

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Relativizar o Holocausto judeu em qualquer sociedade que respeita os valores humanos fundamentais é considerado um ultraje, quiçá um crime. Entretanto, por aqui é muito comum relativizar e minimizar a tragédia histórica da escravidão, seja distorcendo informações de que havia escravidão na África antes da chegada dos colonizadores ou ainda de que no Brasil do passado havia “sinhás pretas”, “empreendedoras capitalistas”, proprietárias de cativos e vastos recursos.

Essas informações estão corretas. Havia escravidão na África antes da chegada dos colonizadores, como houve em Roma e na Grécia Antiga —e, sim, havia homens e mulheres negros que, por processos sociais complexos, impossíveis de serem esmiuçados no espaço de um artigo de jornal, eram proprietários de recursos consideráveis que os colocavam em um patamar diferenciado na estrutura social brasileira.

O problema é como as informações são apresentadas aos leitores em geral: distorcidas pela habilidade narrativa dos “contorcionistas” retóricos, se tornam sofismas. Temos uma ilusão da verdade, que, embora seja formulada a partir de informações históricas corretas, é estruturada intencionalmente para produzir informações divergentes e enganosas sobre a realidade. Seria um paralogismo, não fosse provocado voluntariamente.

Em linhas gerais, a escravidão antes do colonialismo foi uma instituição social que serviu para subalternizar derrotados em conflitos que envolviam comunidades étnicas divergentes, dentre outras motivações. Mas o tráfico, crime de escala épica perpetrado contra as sociedades africanas, só foi possível graças ao Estado capitalista colonial que reduziu humanos à condição de bens econômicos. Foram milhões de homens, mulheres e crianças sequestrados e brutalizados por uma engrenagem perversa que perdurou quase quatro séculos.

Da mesma maneira, pessoas negras ascenderam socialmente nas sociedades escravagistas, não porque eram “empreendedoras” ou “protagonistas do seu destino”. Foram alçadas à condição pelo imbricado xadrez que movia as estruturas sociais da época, uma convergência de interesses que beneficiava quase sempre os que ocupavam posições de poder, administrações e aristocracias colonial e imperial.

A consciência histórica sobre os processos que nos trouxeram até aqui não é apenas uma retórica vitimista dos “escravizados, humilhados, exterminados”. É um passo para superação das estruturas que nos foram legadas por esse passado aviltante. Esse caminho só será possível promovendo uma discussão honesta e comprometida com os valores que elegemos como fundamentais para superar a chaga da escravidão e do racismo.

Não espero abrir este jornal e ler apenas sobre temas e pensamentos convergentes com minhas convicções pessoais. Mas gostaria também de poder não me sentir agredido pela falsa ideia de liberdade de expressão, aqui usada como uma régua assimétrica para publicar tudo, mas que beneficia apenas a pequena elite perversa e adoradora do atraso. Num tempo em que, como nunca, vivemos as consequências devastadoras da divulgação de notícias falsas, não podemos tolerar o racismo sob o manto do “pluralismo de ideias”.

O conselho editorial do jornal deve ser uma “grade de proteção” a favor dos valores humanos fundamentais. Propagar ideias nazistas por aqui seria um crime impensável. Publicar sofismas, que ao serem esmiuçados revelam apenas racismo, é tolerável.

Ao destacar na chamada do artigo de Leandro Narloch que “luxo e riqueza das 'sinhás pretas' precisam inspirar o movimento negro”, o jornal debocha de um trauma coletivo e ultraja a memória do movimento negro. O movimento não é uma agremiação da elite quatrocentona; é a sociedade civil organizada, pessoas negras, com papel fundamental nos avanços civilizatórios que tivemos nas últimas décadas.

Como disse Thiago Amparo “a corda do pluralismo esticou a tal ponto que”, se não fizermos nada, ela “nos enforcará”. Ainda estou refletindo sobre o desejo de “maturidade e conciliação” contido no texto de Narloch. Será que ele sugeriu que nos reconciliemos com a escravidão?

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