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Wlamyra Albuquerque

Quem anda com porcos... Ou negacionismo vende anúncio?

Não dá para defender a democracia e publicar versões falseadas da escravidão

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Wlamyra Albuquerque

Doutora em história social (Unicamp), é professora de história do Brasil (UFBA)

Quem anda com porcos, farelo come. Este é um velho dito popular ainda útil para quem lê na Folha textos que disparam paisagens negacionistas e ideias racistas e, ainda assim, têm espaço no jornal de maior circulação no país. Não vou gastar um minuto deste dia ensolarado para debater a interpretação rasteira, rasa mesmo, que certo jornalista fez do escravismo e da agência de mulheres escravizadas no Brasil.

É "texto-farelo". Historiadoras estão acostumadas a sentar-se à mesa dos debates marcados por divergências bem articuladas e fundamentadas. É banquete para nós que temos discordâncias fundadas em pesquisas científicas e em leituras honestas dos textos alheios.

O artigo do colunista Leandro Narloch ("Luxo e riqueza das 'sinhás pretas' precisam inspirar o movimento negro", 29/9) não passa de farelo à mesa para leitores que merecem algo melhor. Deixemos de lado a fragilidade intelectual de quem não alcança a complexidade das sociedades escravistas. As relações de poder e as estratégias de luta de homens, crianças e mulheres escravizadas eram sofisticadas e, por isso, inatingíveis para quem enxerga o mundo por lentes embaçadas pelo negacionismo.

Aos leitores da Folha peço licença para uma sugestão: informem-se sobre o passado escravista e o racismo estrutural em fontes confiáveis, científicas. Aqui mesmo, volta e meia, são publicadas excelentes análises, em geral resultado de investimento público, produzida por historiadores e jornalistas negros e negras. Muitos deles são militantes —nem por isso abandonam os critérios da ciência em nome das suas causas. Basta que o leitor corra os dedos sobre a tela e poderá ler trabalhos, por exemplo, sobre a lei de 28 de setembro de 1871 (ventre livre) e intelectuais negros, como Machado de Assis, Luiz Gama, Carolina de Jesus e Lima Barreto.

E como a história é dada a bons debates e banquetes de ideias, o que vale a pena é perguntar para os leitores da Folha se a estratégia, tão antiga quanto o papel impresso, de abrir espaço para "texto-farelo" na tentativa de atiçar debates rasteiros ainda vende anúncio. A questão é saber se abrir espaço para teorias negacionistas que sustentam exclusões e genocídio num país enlutado por trás das máscaras arriadas até o queixo ainda é negócio que rende likes.

Quando a escravidão já não podia ser sustentada pelos grandes senhores e a monarquia estava moribunda, José do Patrocínio, este sim jornalista talentoso, se recusou a sentar à mesa dos fazendeiros rendidos aos ideais republicanos, mas relutantes a aderir à defesa da abolição. Já Luiz Gama foi mestre ao questionar os jornais que diziam defender o fim do escravismo, enquanto publicavam anúncios de recompensas por captura de escravos. "Hipócritas", dizia ele.

Eu sei, já deve haver alguém aí prestes a reivindicar a liberdade de opinião. Certamente não estão entre estes os leitores sensatos o suficiente para desconfiar de lunáticos terraplanistas, jornalistas que negam a violência inerente ao escravismo e ao holocausto. Quem defende essas aberrações só se arrisca ao sol porque a imprensa lhes oferece água fresca na sombra das suas opiniões toscas.

A historiografia é feita de muito debates acalorados. Não pensem os leitores que há consenso entre nós sobre o que foi o passado do escravismo, tampouco sobre a importância das ações dos escravizados para falência do escravismo, nem mesmo sobre as razões que levaram à abolição, em 1888.

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Retrato de mulher negra com criança às costas e cesto de bananas na cabeça - Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles

Sim, a ciência também se alimenta de opiniões divergentes e diversos pontos de vistas. Mas aqui estou falando sobre gente que, mesmo discordando, pactua em torno de critérios razoáveis de análise do passado. Por isso, o que vale a pena é que a gente gaste o tempo avaliando porque os jornais ainda oferecem "textos-farelo" que desinformam, que divulgam falsas teorias, que pintam cenários distorcidos.

Já sabemos, não é opinião: a terra é redonda, milhões de africanos foram escravizados nas Américas, milhões de judeus foram massacrados pelos nazistas, houve ditadura no Brasil, as populações indígenas seguem sendo dizimadas, a Amazônia está devastada, a cloroquina não previne a Covid, o Brasil é um país racista e leituras rasas da história não provocam debates que valham a pena.

Decidam-se os leitores sobre a coerência e o compromisso com a ciência do maior jornal em circulação no país. Não dá para defender a democracia e continuar publicando versões falseadas da escravidão apenas para adocicar o racismo e colecionar likes. Decidam-se: quem anda com porcos, farelo come.

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