Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior
Descrição de chapéu África

É assombroso caminhar entre monumentos que celebram a violência

'A Visão das Plantas' me remeteu à indiferença com que enfrentamos nossa história e a tragédia da pandemia

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Acaba de ser publicado no Brasil o romance “A Visão das Plantas”, da escritora angolana Djaimilia Pereira de Almeida. A ideia para a trama surgiu do livro “Os Pescadores”, do jornalista e escritor português Raul Brandão, publicado em 1923.

No texto, há uma passagem sobre o capitão Celestino, em que, “tendo começado a vida como pirata a acabou como um santo, cultivando um quintal de que ainda hoje não me lembro sem inveja”. Segundo Brandão, Celestino era um traficante de africanos escravizados e teve uma vida “misteriosa e feroz”.

Nesse mesmo trecho em que faz essa breve referência ao capitão, ele conta sobre uma revolta de vítimas que seguiam da África para o Brasil, e que foi debelada com sacos de cal atirados no porão, sufocando os revoltosos. A partir dessas referências, a autora imagina a sua vida assombrosa e ambígua.

mulher negra de cabelos longos e usando óculos olhando para baixo
A escritora Djaimilia Pereira de Almeida - Humberto Brito/Divulgação

Os detalhes sobre o jardim de Celestino são amplificados. Nessa aparente tranquilidade de que goza no outono da vida, ele se dedica com esmero ao seu quintal: “Capitão Celestino amava as flores, se é possível amar sem guardar memória”.

E as plantas simplesmente viviam, sem julgá-lo: “As plantas viam-no como um olho de vidro vê a passagem das nuvens. Elas e o seu amigo eram seiva da mesma seiva, da mesma carne sem dó nem piedade. Atrás das costelas, no lugar do coração, o corsário tinha uma planta. E, por tudo isso, não o julgavam”.

Em 2020, na esteira dos protestos contra a morte do americano George Floyd, fomos confrontados em muitas partes do mundo —no Brasil, EUA, Portugal, Reino Unido e Bélgica— com importantes debates sobre os monumentos que ocupam espaços públicos de muitas cidades. São monumentos que, em suma, celebram a violência do passado e que, mesmo distantes no tempo, continuam a determinar nossa vida presente.

No Reino Unido, a estátua do traficante de escravizados Edward Colston foi derrubada por manifestantes antirracistas, abrindo discussão sobre a necessidade de uma revisão histórica acerca da permanência de monumentos em homenagem a colonizadores e traficantes de seres humanos espalhados por toda parte. No Brasil, há inúmeros monumentos públicos, de norte a sul, que homenageiam personalidades com um passado “feroz” como o do capitão Celestino.

Em Salvador há, em frente a um importante hospital particular, uma estátua em homenagem ao conde de Pereira Marinho, que, segundo pesquisa de Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes, foi um importante traficante de africanos. Ele chegou a ter 12 embarcações e dedicou-se ao tráfico de escravizados por quase 30 anos.

Estima-se que mais de 11,5 mil homens e mulheres sequestrados de muitas regiões da África, principalmente da Costa da Mina, aportaram na Bahia a partir das embarcações de Pereira Marinho. No fim da vida, o traficante doou parte do seu patrimônio para atividades filantrópicas, como a Santa Casa de Misericórdia, que mantém o monumento em pé até os nossos dias.

Em São Paulo, há monumentos a Duque de Caxias, Borba Gato e Anhanguera, conhecidos escravistas de negros e indígenas.

E nós temos andado entre os monumentos à violência que ocupam lugares importantes do espaço público, com “os olhos de vidro” das plantas do capitão Celestino. Há um falso debate sobre o direito à memória que fundamenta os argumentos dos contrários à remoção dessas estátuas e outros monumentos; estes dizem que os equipamentos devem ser preservados para estudo e reflexão; os que defendem a remoção, entendendo que os monumentos são reverências aos homenageados, não defendem sua destruição, mas o deslocamento para um local adequado, como museus, onde as imagens poderão estar sublinhadas por suas biografias.

No espaço público, onde transita uma sociedade que pretende superar a chaga da escravidão e seus efeitos nefastos, que perduram até nossos dias, devem ser celebrados os valores humanos, o direito à liberdade, à vida, à justiça e à paz.

O capitão Celestino de “A Visão das Plantas” vive assombrado pelos fantasmas do passado, o que faz sentido, porque, afinal, era ele o algoz. Para as vítimas e seus descendentes, assombroso é caminhar entre imagens que homenageiam a violência, ao custo da premissa de que precisamos refletir sobre a história.

Muitos habitantes da cidade passarão indiferentes aos monumentos simplesmente por desconhecerem as biografias dos representados. Mas vamos imaginar o efeito da substituição desses por outros que evoquem valores importantes para a vida em sociedade. Como ter imagens de abolicionistas do passado e do presente ou monumentos às vítimas de nossa tragédia histórica, a exemplo dos que existem em memória das vítimas do Holocausto, pode fazer a diferença para nossa percepção de história e do projeto de sociedade que queremos.

Por fim, o livro me remeteu à indiferença com que temos enfrentado a tragédia sanitária que atinge o mundo há um ano. É com “os olhos de vidro” das plantas que temos observado os milhares de mortos e o presidente da República, nosso “capitão Celestino”, com a diferença de que ele está em plena ação e desconhecemos sua empatia por qualquer coisa que viva.

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