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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Os nossos rapazes

'They Shall Not Grow Old' ficará na história da arte como um milagre

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Em 1910, Norman Angell publicou um livro que ficou célebre, e não pelos melhores motivos. O título é “The Great Illusion” e Angell, com um otimismo extravagante, argumentava que o mundo jamais entraria em guerra. A dependência econômica e comercial entre as nações seria sempre mais forte do que os instintos bélicos entre elas.

Depois da Guerra Franco-Prussiana de 1870-71, a Europa deveria celebrar o “fim da história” (onde é que eu já ouvi isso?) e abraçar o progresso com uma fé intocada.

Quatro anos depois da publicação do livro, o mundo estava em guerra. Sim, Angell tinha razão quando afirmava que as ligações econômicas entre os Estados eram mais fortes do que nunca.

Mas Angell desvalorizara razões intangíveis, como os orgulhos nacionalistas e a política de alianças militares entre potências que se sentiam mutuamente ameaçadas.

Quando o putativo herdeiro do trono austro-húngaro, Franz Ferdinand, foi assassinado em Sarajevo, o caso já não podia ser visto como uma mera questiúncula regional. E não foi: a declaração de guerra da Áustria-Hungria à Sérvia arrastou a Europa para o abismo.

No ano que agora termina, passaram 100 anos sobre o fim da Primeira Guerra Mundial (1914–1918). E é provável que o leitor, quando pensa no assunto, relembre filmagens da época: imagens desgastadas, granuladas, de um preto e branco fantasmagórico, com os soldados em passo acelerado, quase cômico, a lembrar os bailados de Charlie Chaplin.

Aquilo era um outro mundo, dizemos ou pensamos, e as figuras humanas que vemos não são exatamente humanas; são espectros que já nos parecem tão irreais e distantes como os Cavaleiros da Távola Redonda.

É para combater essa falsa impressão que Peter Jackson nos ofereceu “They Shall Not Grow Old”. O diretor ficou conhecido pelas suas adaptações de Tolkien na trilogia do “Senhor dos Anéis”.

Mas “They Shall Not Grow Old” é um documentário pessoal sobre os rapazes britânicos que lutaram nas trincheiras. Disse “rapazes” porque é assim que eles nos aparecem pela primeira vez.

Eis a história da proeza: o Imperial War Museum de Londres disponibilizou as películas. Jackson e a sua equipe recuperaram o material original. Depois, coloriram os fotogramas. Finalmente, concederam às filmagens originais um ritmo “normal”, 24 fotogramas por segundo.

Mas não só. Contrataram especialistas em leitura labial para que pudessem recriar as conversas dos rapazes (que atores profissionais dublaram, respeitando os sotaques regionais).

Como se tudo isso já não fosse prodigioso, o documentário é narrado através de gravações dos próprios veteranos.

O resultado é difícil de descrever em palavras, mesmo para quem vive delas. Digamos apenas isso: 1914 foi agora. E os fantasmas do passado são os nossos vizinhos, os nossos amigos. Os nossos filhos e irmãos.

Alguns teriam 15 anos quando se alistaram euforicamente. Como contam os veteranos, a paixão pela aventura era tanta que mentir era o melhor remédio. Apesar de 15, diziam ter 19. E, quando não diziam, algum oficial sugeria “festas de aniversário” instantâneas.

Seguidamente, os treinos. A dureza das botas, só amaciada pela urina. A excitação das armas. E a partida para França.

Os campos devastados. Os cavalos esventrados. As trincheiras, a imundície, os membros gelados, congelados, amputados. Mas também as brincadeiras, as bebedeiras. E as prostitutas francesas que iniciavam os mancebos em outras lutas corporais.

Depois, os combates propriamente ditos. Leon Tolstói tinha razão sobre a anarquia nebulosa do campo de batalha. Os rapazes confirmam-no. O medo deixa de ser medo. Passa a ser medo de ter medo, de não estar à altura dos nossos camaradas.

Sobreviveram poucos. E quando o dia do armistício chegou —às 11 horas do dia 11 do mês 11 de 1918— não houve propriamente festejos. Da mesma forma que cumpriram ordens para lutar, cumpriam também ordens para deixar de lutar.

E quando os vemos sentados ao lado dos soldados alemães, trocando gracejos sem violência ou ódio, entendemos de forma brutal a dimensão do crime sobre uma geração inteira.

Então os soldados regressam a casa. As famílias recebem-nos como se eles tivessem feito um passeio no campo. Não se fala sobre o assunto. Qual assunto?

O documentário de Peter Jackson não é apenas uma homenagem. É mais que isso: um exercício de ressurreição, como se fosse possível devolver a vida a quem a perdeu sem saber porque.

Não sei se o diretor é um homem religioso. Mas sei que “They Shall Not Grow Old” ficará na história da arte como o exemplo de um milagre.

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