João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

A canção do malandro

'Baby, Its Cold Outside' marca o triunfo do desejo feminino sobre o obscurantismo de uma sociedade machista

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Bato essas linhas ao som de “Baby, It’s Cold Outside”. A versão de Ella Fitzgerald com Louis Jordan, para mim inultrapassável. Nostalgia natalina? Sim. Mas precaução também. Informa o Wall Street Journal que o tema tem sido banido de várias rádios americanas por causa da sua letra “problemática”. E, como diria Millôr Fernandes, se é gostoso faz logo, amanhã pode ser ilegal.

No tema de Frank Loesser, que levou o Oscar de Melhor Canção em 1949 (o filme era “Neptune’s Daughter”, com uma Esther Williams divina), um homem tenta convencer uma mulher a passar a noite na sua casa com um pretexto meteorológico (“Baby, It’s Cold Outside”).

Mas a mulher resiste, resiste sempre, e ele insiste, insiste sempre. Não será isso um comportamento “predatório”, uma forma de assédio sexual, um convite para a violação pura e simples?

A sensibilidade do tempo diz que sim: se ela não quer ficar, o homem deveria respeitar a sua vontade, abrir a porta e jogá-la na noite invernosa. A insistência do macho, na era MeToo, ganha contornos sinistros. 

O raciocínio é perfeito e perfeitamente lógico. Pena que, escutando a música e lendo a letra, a fantasia histérica não se justifique. Sim, na canção, o homem tenta desesperadamente convencer a mulher a ficar. Ela não quer?

​Não exatamente: ela sente que não pode aceitar porque os olhos da sociedade não tolerariam esse gesto de liberdade. Como diz a mulher, existe a mãe dela, o pai, a irmã, o irmão, a tia. Desconheço se também cita o periquito. Existe, no fundo, o falatório social, conservador, tradicionalista, que impede uma mulher de ser autónoma, seguindo os seus desejos.

Mas, apesar de tudo, e de tanto, e de tantos, ela aceita mais um cigarro. E fica.

Ironicamente, a canção marca o triunfo do desejo feminino sobre o obscurantismo de uma sociedade machista.

E quem pensa que, ao longo do tema, a mulher “foge” do homem e dos seus avanços é porque, em matéria sentimental, vive na caverna. Qualquer pessoa que habite o planeta Terra e tenha vivido esse caos que dá pelo nome de amor sabe que as relações humanas não são uma conversa de repartição pública. São ambíguas, evasivas, temerosas.

Os histéricos são incapazes de perceber isso. Para começar, são superficiais —no duplo sentido da palavra: porque não conseguem ir além da superfície do que é dito e porque têm um entendimento burocrático da paixão e do desejo.

Além disso, na atitude paternalista de protegerem todas as mulheres, mesmo as que não precisam, os histéricos apenas imitam o comportamento reacionário do pai, da mãe, da irmã, do irmão, da tia e do periquito, que nega à mulher a sua independência.

Aliás, se pudessem, aposto que as patrulhas entrariam em cena e, a meio do “flirt”, espancavam o homem e salvavam a mulher contra a sua vontade.

Fica a ideia para uma próxima versão do tema.

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