Siga a folha

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Descrição de chapéu guerra israel-hamas

A fúria que o conflito israelense-palestino desperta

Ela é inversamente proporcional ao conhecimento sobre o tema

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

A frase aparece nas marchas pró-Palestina, embora só rime em inglês: "Do rio ao mar, a Palestina será livre!". Mas que rio será esse de que tanto se fala?

E, já agora, que mar?

Será que o leitor consegue identificar, sem esforço, o nome dessas duas entidades?

Eu sei que consegue. Nem todos podem dizer o mesmo. Meses atrás, o Wall Street Journal perguntou a 250 universitários interessados no assunto a mesma pergunta que eu formulei aqui.

Pode anotar: 47% não conseguiram identificar o rio e o mar em questão, apesar de gritaram o slogan nas marchas respectivas. Falaram do Nilo, do Eufrates, do mar das Caraíbas, do mar Morto, até do Oceano Atlântico.

Mas interessantes foram aqueles que, confrontados com um mapa do Oriente Médio, entenderam pela primeira vez que "do rio (Jordão) ao mar (Mediterrâneo)" significaria o fim de Israel, não a existência de dois Estados.

Manifestante com o cartaz 'From the river to the sea, Palestine will be free", em ato em Berlim - Odd Andersen/AFP

Não estou espantado. A fúria que o conflito israelense-palestino desperta é inversamente proporcional ao conhecimento sobre o tema. Direi mais: quanto menos se sabe, mais fanático se é —e isso vale para os dois lados. Haverá solução?

Sempre há: lendo. E, na vasta bibliografia sobre a tragédia, há um livro de Ian Black que tem se destacado nos últimos anos: "Enemies and Neighbors: Arabs and Jews in Palestine and Israel, 1917 – 2017" (inimigos e vizinhos: árabes e judeus na Palestina e Israel, 1917-2017).

Li a obra a conselho de amigos e pasmei com a erudição de Black: o historiador leu tudo —textos canônicos, obras de referência, jornais, diários, cartas privadas— e apresenta o conflito em toda sua complexidade histórica.

Onde outros veem apenas imperialistas ou terroristas, consoante o gosto, Black vai revelando seres humanos de carne e osso que a história contemporânea foi empurrando para a Palestina otomana: judeus que fogem dos pogroms russos; trabalhadores palestinos que se sentem ameaçados, e depois economicamente excluídos, pela imigração judaica.

Mas também nacionalistas judeus contra nacionalistas árabes, ambos brutais e irreconciliáveis, disputando a totalidade do território entre o famoso rio e o famoso mar.

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 4 de março de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

A juntar a isso, Black é primoroso na reconstituição da duplicidade das grandes potências, sobretudo a Inglaterra, que nos anos da Primeira Guerra Mundial foram fazendo promessas contraditórias aos dois lados.

Aos judeus, a promessa de que teriam o seu Estado na Palestina; aos árabes, de que teriam o seu Estado também. Era preciso não alienar apoios na luta crucial contra os otomanos.

Quando as armas se calaram, em 1918, havia um rastro de ilusões que tinham sido semeadas e que agora exigiam a sua colheita. O Plano de Participação das Nações Unidas (1947) tentou, no fundo, resolver o que já era irresolúvel.

Ian Black critica, com razão, as lideranças árabes que atraiçoaram as aspirações dos palestinos ao não aceitarem a solução dos dois Estados —a única possível mediante as circunstâncias.

Mas também não perdoa a obsessão judaica, depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, de povoar a Cisjordânia (e, em menor grau, Gaza) com assentamentos israelenses, que inviabilizam qualquer Estado palestino.

Hoje, olhando para o conflito, há quem diga que a destruição do Hamas em Gaza é condição "sine qua non" para que um dia seja possível retomar o caminho dos dois Estados.

Parcialmente, isso é verdade: o Hamas rejeita a existência de Israel e, desde os Acordos de Oslo, esteve sempre na vanguarda da destruição do "processo de paz".

Mas, lendo Ian Black, não é preciso citar os radicais para explicar o fracasso de Oslo.

Os líderes "moderados" de Israel e da Autoridade Palestina fizeram um bom trabalho nesse capítulo: a incapacidade para fazerem sacrifícios dolorosos na busca da paz —Israel com os assentamentos, por exemplo, e a Autoridade Palestina com a exigência irreal do retorno dos refugiados palestinos a Israel— cavou um fosso provavelmente intransponível.

Ian Black não oferece nenhuma solução para o conflito, talvez por suspeitar que não exista solução. Muito menos agora, com as matanças infernais em Gaza.

Mas já é um feito conseguir escrever 600 páginas de história sem desculpar nenhuma das partes em confronto. O realismo sempre foi incômodo para os fanáticos.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas