João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Pária internacional, resta a Putin a Coreia do Norte e o Irã

Um nostálgico pode ser reacionário, mas não tem de ser estúpido

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Tempos atrás, a Rússia convidou uma delegação do Hamas para uma recepção em Moscou. Os bons espíritos sempre se encontram.

Aliás, sempre se encontraram: não é segredo para ninguém que, nos dois últimos anos, os contatos entre as duas partes foram frequentes. Israel sabe disso, não precisa de fingir espanto.

Eis uma das consequências da invasão da Ucrânia: como pária internacional, Putin foi se aproximando de quem restou. Militarmente, da Coreia do Norte e do Irã.

Casa destruída em Kiev - Roman Petushkov/Xinhua

De resto, a China mantém-se compradora do gás e do petróleo russos a preços reduzidos, sem fornecer armamento para o amigo Vladimir, e a Turquia prefere a sua "neutralidade" estratégica.

Será que Putin imaginava que, ano e meio depois da sua invasão, as visitas lá de casa seriam terroristas do Oriente Médio?

Talvez não, escreve Serhii Plokhy, o renomado historiador de Harvard e um dos grandes especialistas na história da Rússia e da Ucrânia. O livro, escrito em cima dos acontecimentos, intitula-se "The Russo-Ukranian War: The Return of History" (a guerra russo-ucraniana: o retorno da história). Bom título, sobretudo por causa do subtítulo: o retorno da história.

De fato. Quem não se lembra do ensaio de Francis Fukuyama sobre "o fim da história"? Com a queda do Muro de Berlim, só restava mesmo a democracia liberal como alternativa realista, escrevia ele no seu otimismo hegeliano. O nacionalismo e o fundamentalismo religioso, que Fukuyama admitia como rivais, teriam sempre o pavio curto.

Esse fim da história durou uma década, até aos ataques terroristas do 11 de Setembro em Nova York e Washington.

Na virada do século (e do milênio), a história retornava em força e Robert Kagan, colega de Fukuyama, escolheu essa expressão como título do seu ensaio ("The Return of History and the End of Dreams"; o retorno da história e o fim dos sonhos).

Dizia Kagan, em observação inesquecível, que os ocidentais poderiam estar confusos com o retorno da história. Mas um diplomata do século 19 entenderia o mundo do século 21 sem precisar abrir os olhos.

Era o regresso das grandes potências na busca perpétua de território e "esferas de influência". A China no Pacífico. O Irã no Oriente Médio. A Rússia na Europa. E a União Europeia, a Otan e os Estados Unidos tentando segurar o castelo.

A primeira frase do ensaio de Kagan é um achado: "O mundo voltou a ficar normal." Realismo e cinismo, combinação perfeita para o café da manhã.

O historiador Serhii Plokhy concorda, parcialmente, com Kagan. Mas o retorno da história, pelo menos no caso russo, pode significar também o fim das pretensões imperiais de Moscou.

Mas, antes do fim, convém entender o princípio: o que levou Putin à invasão?

Duas coisas, defende Plohky: fantasias nostálgicas e reacionárias, por um lado; e a evolução geopolítica de finais do século 20, inícios do 21, por outro.

As fantasias resumem-se numa história contada por Plokhy: em 2008, enquanto premiê, Putin perguntou ao editor de rádio Alexei Venediktov qual era, na opinião dele, o maior legado dos seus governos. O editor, antigo professor de história, respondeu: a reunificação do Patriarcado de Moscou com a Igreja Ortodoxa no exílio.

Putin, visivelmente desiludido, respondeu: "Só isso?"

Em 2015, já depois da anexação da Crimeia, Putin voltou a perguntar o mesmo a Venediktov. O editor percebeu qual era a resposta que Putin esperava ouvir: "Krushchev entregou a Crimeia à Ucrânia, Putin a resgatou para a Rússia."

É uma história exemplar. A que podemos juntar a resposta apócrifa que Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores, terá dado quando lhe perguntaram quem eram os principais conselheiros de Putin: "Pedro, o Grande, Catarina, a Grande e Alexandre 2º".

Tradução: Putin vê-se como herdeiro dos grandes czares. E, tal como eles, assume a missão de preservar o império, negando à Ucrânia uma existência independente, ou seja, distante de Moscou.

Mas nem tudo é fantasia, adverte Serhii Plokhy. A implosão da União Soviética, que se tornou irreversível depois da independência da Ucrânia em 1991, nunca foi inteiramente digerida pelas novas elites russas.

Sim, no papel, a Rússia comprometia-se a respeitar a integridade territorial da Ucrânia. Fê-lo quando Kiev abriu mão das suas armas nucleares (medonho erro, percebemos agora) e repetiu a jura no Tratado de Amizade de 1997.

Mas assim que o país começou a procurar garantias de segurança por outras bandas, ou seja, aproximando-se da Otan, o urso moscovita rosnou e ameaçou.

O ponto da discórdia, pelo menos retórico, estaria na promessa que James Baker, secretário de Estado norte-americano de George Bush (pai), teria feito a Gorbachev de que a OTAN não se expandiria para leste depois da reunificação alemã.

Não foi bem assim, esclarece Plokhy. Baker terá perguntado a Gorbachev (e ele confirmou) se ele preferiria a Alemanha fora da Otan, com mãos livres para se tornar em nova potência militar no seio da Europa, ou dentro da OTAN, sob sua jurisdicação, e com a garantia de que não havereria expansão para o leste da própria Alemanha.

A Alemanha entrou na Otan. A Ucrânia, ao contrário dos países bálticos, sempre foi uma hipótese remota. Mas dois acontecimentos históricos fizeram fervilhar a imaginação acossada de Putin: a decisão da Otan de bombardear a Sérvia em 1999 para proteger os muçulmanos do Kosovo e a cruzada de Bush (filho) para "democratizar" o Oriente Médio com a invasão do Iraque, tudo sob o falso pretexto de que Saddam Hussein teria armas de destruição em massa.

A juntar a isso, a vida interna da Ucrânia também fez soar os alarmes no Kremlin. Em 2004, uma revolução pacífica tomou as ruas de Kyiv contra a vitória forjada de Viktor Yanukovych, candidato pró-russo.

A "revolução laranja" levou ao poder Viktor Yushchenko, envenenado durante a campanha eleitoral, que milagrosamente sobreviveu – e que voltou a orientar o país rumo à União Europeia e à Otan.

Verdade que Yanukovych regressaria ao poder em 2010. Mas a tentativa de afastar o país da União Europeia produziu outra revolução, em 2014.

A resposta da Rússia aconteceu no mesmo ano: anexação da Crimeia, início da guerra na região do Donbass –e, em 2022, a invasão do país.

Como escreve Serhii Plokhy, o conflito em curso é uma guerra do século 19, com estratégias do século 20 e armas do século 21. Touché.

E apesar de não sabermos ainda qual será o seu desfecho, há duas certezas que emergiram nesse ano e meio: a identidade ucraniana, que Putin sempre negou como distinta da russa, é agora um fato irreversível, escrito com sangue.

Por outro lado, o mundo multipolar que Putin desejava encaminha-se para uma nova bipolaridade entre os Estados Unidos e a China, a grande beneficiária das aventuras de Putin.

Essa talvez seja a pergunta final –e fatal. Sabendo o que sabe hoje –a resistência heroica da Ucrânia, o apoio dos Estados Unidos, a submissão econômica e política face à China–, será que Putin teria arriscado tudo com a invasão?

Duvido. Um nostálgico pode ser reacionário, mas não tem de ser estúpido.

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