Siga a folha

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Descrição de chapéu tecnologia

Em arte, a autenticidade é mais importante que o 'prazer suíno'

Estreia do filme 'O Último Roteirista' é cancelada em Londres porque roteiro foi escrito por inteligência artificial

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Que delícia de história! Leio na imprensa que um filme intitulado "O Último Roteirista", dirigido por Peter Luisi, teve a sua estreia cancelada em Londres. Motivo?

Não, não são os motivos habituais em que a "cultura do cancelamento" se especializou. Ou, como diria o presidente Lula, não foi por "ensinar putaria" às massas.

O problema é mais sofisticado: o filme foi integralmente escrito pelo famoso ChatGPT 4.0, a ferramenta de inteligência artificial da OpenAI. Peter Luisi limitou-se a introduzir 17 palavras com a ideia da história. Depois, o computador fez o resto em quatro dias.

Lei da União Europeia sobre IA é a primeira a responsabilizar as empresas pelos efeitos de sistemas de IA de grande porte e uso geral - Dado Ruvic/Reuters

Nem tudo é artificial, porém. Os atores são reais. Os técnicos idem. Só as palavras foram escritas pelo chat.

A história é deliciosa, repito, porque permite uma questão: se você vai no cinema e sai satisfeito com o filme, será que a informação de que ele foi escrito por um computador estraga esse prazer?

Ou tudo que conta é o prazer do visionamento, independentemente de quem escreveu a história?

Um utilitarista básico diria que é indiferente saber quem escreveu a história. Se a mesma funciona e cumpre o seu papel —entreter, emocionar, deslumbrar— qualquer discussão autoral é supérflua.

Sim, no limite, o ChatGPT pode ser uma ameaça para os escritores. Mas, do ponto de vista do público, qual é a diferença?

Boa pergunta. Arrisco uma resposta: a diferença talvez esteja no abismo que separa um quadro original de uma cópia perfeita. Por que motivo um Van Gogh genuíno atinge milhões em leilão —e uma cópia de Van Gogh, feita pelo mais brilhante falsário, é descartada como imprestável?

Se a experiência estética é tudo que interessa e se uma imitação perfeita de Van Gogh abre as portas a essa experiência, é um pouco pedante exigir uma assinatura autêntica.

E, no entanto, é autenticidade que muitos procuram, não apenas aquele "prazer suíno" de que falava John Stuart Mill, um utilitarista que estava longe de ser básico.

A obra interessa. A nossa resposta perante ela também. Mas o autor interessa tanto ou ainda mais porque, como lembrava Émile Zola, queremos ver a vida filtrada por um temperamento.

Uma ferramenta de inteligência artificial não tem temperamento. Não tem experiência, memória, alegrias ou tristezas. Não tem feridas para lamber, nem ressentimentos para exorcizar. Não tem amores ou desamores. Não tem vida, no sentido pleno da palavra; apenas um simulacro de vida.

Em teoria, sou capaz de imaginar um falsificador que, tecnicamente falando, pode ser tão bom como Van Gogh. Ou até melhor.

Mas não é Van Gogh. Não há nele a urgência, a visão e a loucura que Vincent exprimia nas suas cartas ao irmão Theo.

Vou mais longe: entre um filme falhado escrito por um ser humano ou um filme satisfatório escrito por uma máquina, prefiro o fracasso. "É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito", escrevia Stuart Mill. "É melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito."

Em finais do século 18, como resposta ao academismo e ao esgotamento da arte neoclássica, os românticos colocaram no centro do palco a experiência da individualidade.

A inteligência artificial pode ameaçar essa individualidade com a sua eficácia impessoal. Ou pode trazer uma revalorização da originalidade e do humano para públicos cansados do artifício.

Nessas matérias, a história passada é o melhor espelho para a história do futuro.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas