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Coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis.

Vento Negro

Ares anunciando mudanças ganham força com os movimentos de rua, com a CPI e a revelação de irresponsabilidades

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Quando estou bem costumo ouvir música ao tomar banho. E quando estou melhor ainda, canto. O microfone é a mão em concha e o equipamento é uma caixinha que amplifica o som e me faz imaginar cantando na chuva, tipo um Fred Astaire do terceiro mundo.

Naquele sábado frio de junho, não sei porque cargas d’água, decidi que o repertório seria "Vento Negro", que há muito tempo eu queria ouvir, cantada por Vitor Ramil, gaúcho de Pelotas como meu saudoso pai. Dito e feito: foi a música estrelada naquele show-banho. Ainda busquei a letra no aplicativo e, mesmo sem tê-la encontrado, soltei a voz e “cantei, cantei, até ficar com dó de mim”, como escreveu o Chico.

No dia seguinte, domingo cedo, acordo com um telefonema distante e rouco informando-me sobre o falecimento da querida tia Tereza. Ato contínuo comprei passagem, arrumei mala e peguei avião, tentando chegar a tempo da última despedida. Velório é coisa triste. Cerimônia encerrada fomos para a casa de Lourdes, sua irmã, abrir o luto, lamber as feridas e nos confortar mutuamente. Lá, como uma arqueóloga, tia Lourdes procurava escritos da irmã Tereza em agendas antigas, buscando registros de uma vida. De repente ela me passa uma folha de papel em que Tereza escreveu várias vezes meu e-mail, como a buscá-lo na memória. Examino a folha de letras trêmulas —como se escritas sob um terremoto— e ao olhar seu verso deparo-me com a letra de "Vento Negro", por ela manuscrita. A letra da música, que eu não tinha encontrado no dia anterior, tocava tanto a ela quanto a mim.

Parecia que a folha de papel estava endereçada para mim: de um lado meu endereço eletrônico, do outro a letra que eu procurava. O vento negro, que anuncia mudanças, aparecia inteiro no dia de sua morte. A música que eu não ouvia há anos e que tinha cantado no dia anterior surgia ali pelas mãos da tia Tereza, recém falecida.

Há também por aqui um vento anunciando mudanças.

Internamente ele ganha força com os movimentos de rua, com a CPI e as revelação de irresponsabilidades e interesses escusos do governo federal e seus grupos no enfrentamento da pandemia, numa espiral fúnebre que produz uma enorme quantidade de mortes que seriam evitáveis.

Externamente o vento é formado por correntes continentais, e se fortalece ao passar pelos EUA, Chile, Bolívia e Peru, onde já provocou mudanças.

O contexto internacional deixa claro que não é favorável a aventuras, e que pode reagir: Europa e EUA mostram seu desconforto com as políticas do governo federal, sobretudo as relacionadas ao meio ambiente, mas também a outros temas que vem causando espanto como o desdém com a pandemia e o descaso com os indígenas. O isolamento a que estamos submetidos por outros países advém de questões objetivas, mas também é fruto da rejeição a um governo que tem a violência como método.

As manifestações de rua crescem, a grande mídia se posiciona contra autoritarismos, parte dos empresários percebe a natureza conflituosa do presidente e sua vocação para gerar instabilidade permanentemente, quando negócios precisam de previsibilidade. A falta de um projeto de país não traz perspectivas de crescimento econômico —no máximo soluços de baixa intensidade— gerando crise e desemprego.

A confluência dos movimentos de rua, de parte importante da mídia e do poder econômico anunciam a chegada ao limite da paciência.

E o vento negro começa a ser percebido por todos. Não há como não senti-lo: é suave, mas forte; é constante e crescente; iniciou lentamente, mas não dá sinais de que vai parar.

Ninguém tem bola de cristal, mas tudo indica que "um vento forte se erguerá, arrastando o que houver no chão", impulsionando mudanças. O desgaste do presidente revelado nas diversas pesquisas de opinião integra descontentamentos e é só um sopro do que pode estar por vir.

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