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Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

Descrição de chapéu Coronavírus

É inútil comparar paixão pela bola com respiradores que nos faltam

Que Neymar ganhe quanto puder, mas que ninguém se esqueça dos que estão na luta

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“Ela vem toda de branco”, canta Jorge Ben Jor, e a lembrança esquece da namorada homenageada na canção para pensar na enfermeira, na médica, nas pessoas do batalhão de frente da guerra contra a pandemia. Ganham mal, arriscam a vida, se matam de trabalhar e são hostilizados nas ruas, ônibus e metrôs.

A inversão de valores é tal que os heróis são tratados como ameaça. Raro leitor sugere comparar o trabalho e os salários dessa gente com os dos jogadores de futebol.

Por mais injusto e cruel que pareça, a indústria do entretenimento produz situações profissionais incomparáveis com quaisquer outras profissões. O mais brilhante dos cirurgiões faz trabalho solitário, de altíssima tensão, precioso, embora não arraste ninguém para vê-lo exercer as habilidades que salvam vidas.

Um goleiro médio vale mais no mercado do show que o melhor dos enfermeiros. Nada justifica que ganhem tão mal.

Só quem já dependeu deles, ou viveu a angústia de torcer para que sejam bem-sucedidos no atendimento a alguém próximo, sabe dar importância ao denodo de que são capazes.

Muitas vezes, anônimos, viram 48 horas sem arredar pé e, se preciso for, mais 24 porque algo deu errado no revezamento ou pela falta mesmo de mão de obra, e é preciso manter o plantão.

De máscaras, então, ficam ainda mais invisíveis.

Inútil comparar a paixão que a bola desperta com os respiradores que nos faltam.

Dunga, o zagueiro Pedro Geromel e outros atletas do Grêmio ajudam a distribuir alimentos para doação em Porto Alegre - Diego Vara - 22.abr.20/Reuters

Estádios temos com padrão Fifa, e hospitais escasseiam até com padrão da Federação Amazonense de Futebol, com todo respeito. Mas é velha, e muitas vezes falsa, a questão sobre primeiro investir no básico e deixar o aparentemente supérfluo para depois.

O homem chegou à Lua e mais de 800 milhões passam fome na Terra. Seria possível chegar lá em cima e atender aos famélicos aqui em baixo se, de fato, houvesse vontade. Gasta-se em armamentos muito mais que em alimentos.

Porque o sistema é perverso, as cidades são geridas como unidades de negócio, cada bairro tem um papel na hierarquia das metrópoles, e às periferias, cada vez mais densas, cabe o papel de amontoar excluídos.

A pandemia goleia a injustiça social. Até nos Estados Unidos, por falta de sistema público de saúde.

Na abertura da Olimpíada de Londres, houve uma rápida cena em que apareceu uma enfermeira. Ninguém entendeu nada entre os estrangeiros na tribuna de imprensa.

Dias depois, um jornalista brasileiro precisou ir ao posto de saúde, direito garantido aos credenciados.

Muito bem atendido, a custo zero tanto do atendimento quanto do remédio que lhe deram, na exata quantidade de pílulas, para o tratamento de infecção. Uma semana depois, contou, admirado, ter recebido telefonema da médica que o atendera perguntando como ele estava.

Imediatamente, todos entenderam a razão do flash com a funcionária do NHS, o SUS britânico.

Que Neymar siga ganhando o quanto puder ganhar, que Gabigol siga dando alegrias sem fim à Nação rubro-negra, que Dudu fique milionário e Pato cantando alegremente.

Mas que o Brasil, tão logo termine a pandemia, não se esqueça dos tantos que morreram por falta de atendimento suficiente e daqueles que seguirão na luta para que todos vivamos.

Porque, não fossem elas e eles, fisioterapeutas, pessoal da limpeza, atendimento e manutenção dos hospitais, serviços verdadeiramente essenciais, em vez de gritar gol, gritaríamos só por socorro.

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