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Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Fukuyama ajuda a entender influência de Putin em direita populista e esquerda iliberal

Para autor, guerra na Ucrânia mostra que não podemos pressupor que a ordem liberal é uma certeza

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Em artigo de 4 de março para o jornal Financial Times, Francis Fukuyama reflete sobre o porquê da guerra na Ucrânia interessar a todos.

Segundo o professor —autor de "Liberalism and Its Discontents" (2022)— o atual conflito representa um marco na história mundial, forçando-nos a pensar seriamente sobre as consequências do avanço do iliberalismo dentro das nossas próprias sociedades, a exemplo do que testemunhamos, hoje, com o crescente apelo do populismo em países com tradição democrática, tal como os Estados Unidos, e da ascensão de regimes autocráticos em países como a Rússia, a China e a Venezuela.

Membro de força de defesa da Ucrânia em frente a checkpoint na capital, Kiev - Fadel Senna - 20.mar.22/AFP

Para Fukuyama, a guerra da Ucrânia simboliza o fim da "era pós-Guerra Fria", iniciada em 1991 e caracterizada pelo otimismo em relação à saúde das democracias liberais, alimentado pela queda da União Soviética e pelo modo como os seus países-satélite pareciam, naquele momento, retomar as rédeas dos seus destinos.

Ele argumenta que, para os otimistas de outrora e, principalmente, para uma geração cuja memória dos grandes conflitos do século 20 parece haver perdido força, a guerra na Ucrânia deixa claro que não podemos nos dar ao luxo de pensar a ordem liberal como uma certeza.

Fukuyama define o liberalismo como uma doutrina cuja origem remonta ao século 17 e que tem por objetivo conter o apelo à violência a partir de uma espécie de reformulação das nossas expectativas políticas: "[O liberalismo] reconhece que as pessoas nunca concordarão sobre as coisas mais importantes, ao exemplo de qual religião devemos seguir. No entanto, elas precisam tolerar os concidadãos que expressam opiniões distintas".

Esse liberalismo clássico defendido por Fukuyama encontra o seu fundamento no respeito à igualdade de direito, ao devido processo legal e ao governo constitucional. Porém, segundo o autor, esses princípios encontram-se sob o ataque das mais diversas correntes ideológicas.

No campo da direita, Fukuyama comenta algumas das distorções do pensamento liberal empreendidas pelos entusiastas do neoliberalismo durante as décadas de 1980 e 1990. Ele também menciona o número crescente de movimentos populistas fundados na utopia do retorno a uma época em que todos professavam a mesma religião e compartilhavam uma mesma identidade étnica e cultural.

Já no campo da esquerda, Fukuyama chama a nossa atenção para como algumas tendências progressistas também se baseiam em uma séria distorção do pensamento liberal clássico.

Ele argumenta que "muitos progressistas sentem que uma política liberal —com ênfase no debate e no estabelecimento de um consenso— seria muito lenta e teria falhado em sanar as desigualdades econômicas e raciais resultantes do processo de globalização. Muitos progressistas mostram-se dispostos a limitar a liberdade de expressão e o devido processo legal em nome da justiça social".

Fukuyama está ciente de que a crise do liberalismo não tem origem em Putin, mas ele também argumenta que o apelo de figuras autoritárias e de regimes autocráticos tende a crescer à medida que o liberalismo se mostra incapaz de suprir as demandas daqueles indivíduos que sentem a necessidade –ou realmente carecem– do suporte de uma sociedade mais forte.

É nesse sentido, portanto, que a Rússia de Putin acaba exercendo influência tanto na direita populista quanto na esquerda iliberal, à medida que ela vem emprestando apoio a todo e qualquer regime que se posicione contrariamente aos Estados Unidos e à União Europeia.

O argumento de Fukuyama é interessante, porque ele acaba nos ajudando a compreender um pouco melhor seja o entusiasmo da direita com o regime de Putin, seja o silêncio de alguns setores da esquerda em relação à guerra na Ucrânia.

Quem também escreve sobre esse mesmo tema, de modo a complementar a abordagem de Fukuyama, é a jornalista e historiadora Anne Applebaum. Em texto para a revista The Atlantic, ela recorre ao pensamento de Hannah Arendt para nos alertar como a nossa realidade política vem ganhando contornos cada vez mais sombrios.

Segundo a autora, as atitudes de Putin na Ucrânia, bem como em seu próprio país, emprestam nova relevância ao que Arendt escreveu no prefácio de "Origens do Totalitarismo" (1951):

"Nunca antes nosso futuro foi mais imprevisível, nunca dependemos tanto de forças políticas que podem a qualquer instante fugir às regras do bom senso e do interesse próprio — forças que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padrões dos séculos anteriores. É como se a humanidade se houvesse dividido entre os que acreditam na onipotência humana (e que julgam ser tudo possível a partir da adequada organização das massas num determinado sentido), e os que conhecem a falta de qualquer poder como a principal experiência da vida".

O posicionamento de Applebaum em relação a Putin encontra respaldo no que outros especialistas em Rússia argumentam desde o início da guerra.

Em evento de janeiro promovido pela Universidade Harvard e em entrevistas concedidas ao jornal The New York Times e a Sky News, Fiona Hill, ex-membro do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos e autora de dois livros que podem nos ajudar a entender a Rússia e a sua relação com o Ocidente —"Mr. Putin: Operative in Kremlin" (2015) e "There Is Nothing for You Here" (2021)– argumenta que Putin está tentando reescrever a história do "pós-Guerra Fria" na tentativa de afastar a presença americana em território europeu.

Segundo a autora, Putin parece agir a partir de impulsos pós-coloniais e pós-imperialistas, mostrando-se incapaz de compreender por que os ucranianos desejam administrar os seus próprios interesses políticos.

Na visão de Putin, é como se o poder decisório dos ucranianos em relação ao próprio país fosse irrelevante, o que, por sua vez, faz com que ele racionalize a vontade dos ucranianos como sendo uma ação maliciosa da União Europeia e dos Estados Unidos na tentativa de afastar a Ucrânia da Rússia.

Outro ponto interessante apresentado por Hill, em entrevista concedida ao jornalista Ezra Klein, é que a ênfase de Putin em uma espécie de identitarismo eslavo, branco e cristão, parece não tolerar a ideia de que possam existir outras formas de identidade regional, ao exemplo do que vemos representado pelo presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, alguém que, segundo a autora, dá um nó na cabeça do presidente russo, por se tratar de um judeu, falante de russo, cuja vivência da própria identidade não se enquadra no tipo de identitarismo defendido por Putin.

Acredito, portanto, que a melhor explicação para o fato de essa guerra ser do interesse de todos é sugerida por Fiona Hill, quando ela comenta que, de alguma forma, o que estamos vendo pode ser interpretado como a luta dos ucranianos em defesa da liberdade para cultivar a complexidade das suas próprias identidades:

"A Ucrânia está cheia de pessoas de todas as origens. Há muitos ucranianos étnicos na Rússia que falam russo. Existem milhões de cidadãos ucranianos trabalhando na Rússia, e há muitas pessoas na Ucrânia que falam russo, mas agora sentem uma identidade muito forte ligada ao lugar e à história e à cultura compartilhada nos últimos 30 anos. Os ucranianos não querem voltar para a versão da Ucrânia que Vladimir Putin está apresentando para eles: eles querem o direito de decidir por si mesmos".

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