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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Humorismo e poesia, inveja e gratidão

O escritor Clive James tinha o gênio da comparação exata e destrutiva

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Hoje em dia Arnold Schwarzenegger é um político respeitável e moderado. Apesar de pertencer ao Partido Republicano, o ex-governador da Califórnia tem se destacado por iniciativas de proteção ao meio ambiente, pelo apoio à legalização da maconha e pelas críticas a Donald Trump.

Houve um tempo, contudo, em que ele tinha tudo para despertar desconfiança junto ao pessoal de esquerda. Era a favor de Nixon, de Reagan e de Bush; não hesitou em aplicar a pena de morte no seu estado; e, talvez mais importante do que isto, seu sucesso em Hollywood se devia menos ao talento como ator do que à impressionante massa de músculos que acumulara como fisiculturista.

Não é uma atividade que intelectuais tenham em alta conta. A julgar pelo meu caso, os frágeis, os barrigudinhos, os curvados e os míopes nunca irão perdoar quem pode sair por aí se exibindo sem camisa.

Claro que nunca invejei o tipo de cidadão que tem dois torresmos no lugar de orelha e que, por algum motivo, faz o possível para que a musculatura dos ombros chegue até o meio da cabeça. Mas nunca se deve ignorar o ressentimento dos homens que não contaram com os favores de Apolo.

O poeta e crítico australiano Clive James era careca, barrigudinho e tinha um complexo físico muito particular. Era muito redonda e grande a parte de trás da cabeça. Ele queria que seu crânio se prolongasse como uma tábua a partir da nuca.

Eu não sabia, até a semana passada, que Clive James tinha sido o autor de uma tirada famosa contra a aparência de Arnold Schwarzenegger, nos tempos em que este era o Mister Universo.

“Ele parece”, escreveu Clive James, “uma camisinha marrom recheada de avelãs”.

Não foi o único momento em que esse escritor australiano tirou partido da própria inveja, ou de algum sentimento semelhante. 

Num livro de recordações da infância e da adolescência (“Unreliable Memoirs”, ou “memórias inconfiáveis”), ele discorre longamente sobre as sessões de masturbação coletiva que ocupavam sua turma da vizinhança.

Era inevitável que fizesse comparações com o dote físico de alguns colegas. Mantinha entre os dedos, conta James, algo que não passava de um tímido casulo; ao seu lado, a cueca de um amiguinho se comparava ao ancoradouro de um submarino atômico soviético.

Como no caso de Schwarzenegger, o que está em ação aqui é o talento de Clive James para a comparação hiperbólica, para a metáfora extravagante.

Ninguém duvida que é difícil fazer poesia sem recorrer a imagens e comparações. Mas nem sempre nos lembramos que também o humor depende muito desse tipo de fantasia verbal; traduz-se muitas vezes em metáforas desconexas, e ainda assim perfeitas.

Crítico de televisão, cronista, ensaísta e poeta, Clive James morreu na semana passada, aos 80 anos. Sobreviveu por quase uma década a um diagnóstico de leucemia; os médicos lhe davam poucos meses de vida, mas um tratamento experimental permitiu que ele continuasse publicando livro atrás de livro, poema atrás de poema. Encontrou tempo para traduzir toda a “Divina Comédia” para o inglês.

Ele confessou que continuar vivo lhe dava alguma vergonha, depois de tanto alarde em torno de sua morte iminente.

Eis que, já famoso e no fim da vida, ele escreve um poema chamado “Japanese Maple” (“plátano japonês”? fica horrível). Algum dia melhoro a tradução: “Tua morte, bem perto agora, será leve/ Não há dor em dissolução tão lenta/ O respirar mais breve/ Incomoda um pouco; a vida, sim, se ausenta/ Mas ficam a vista e o pensamento:/ Mais intensos, até. Não tinhas visto ainda/ Toda a beleza e a doçura da chuva fina/ Que cai sobre as folhas pequeninas/ E impregna os muros de tijolo do quintal/ Como no salão espelhado de um palácio real/ Com mais esplendor quando a luz termina”.

Clive James continua. “A cintilação ilumina o ar/ Não termina/ Sempre que houver chuva estará presente/ Além de mim e do meu tempo. Com minha parte me contento/ O plátano, que minha filha escolheu, ainda é novo/ Chegando o outono, suas folhas serão de fogo/ O que me cabe/ É viver até esse momento/ Que então a partida acabe/ Para mim, não haverá nenhuma diferença:/ Abrindo para banhar meus olhos, de par em par/ As janelas deixarão que entre/ Uma inundação de cores, sem findar/ Enquanto morre a minha mente/ Incinerada pela visão de um mundo que reluziu/ Com tanto brilho enfim, e então partiu.”

Humorismo tem hora. Aqui, a poesia toma a palavra. Há coragem em tanta gratidão.

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