Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

A fórmula da felicidade senil

Descobri um aplicativo bem melhor do que o do envelhecimento fotográfico

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Ilustração de André Stefanini para Marcelo Coelho de 24.jul.2019.
André Stefanini/Folhapress

Qual vai ser a sua aparência daqui a 20 anos? O aplicativo está na moda, mas me interessa pouco. Já tendo passado dos 60, gostaria mais de algo no sentido inverso.

Meu programa de fotorrejuvenescimento seria, aliás, um bom teste para todas as arapucas desse gênero. Eu poderia comparar o resultado eletrônico com meus retratos reais de 1990 e ver se confere. Duvido.

Talvez esteja aí a graça do envelhecimento pela internet. Alterada a sua foto, você não sai tão horrível quanto temia. Seu envelhecimento, digamos assim, é meramente cosmético.

A máquina não prevê um ganho de 40 quilos; acrescenta, pelo que vi, apenas uma boa porção de rugas, cabelos brancos e, quem sabe, uma expressão de sabedoria no rosto.

Desde adolescente, quis ser um velhinho. Estaria livre de muitas pressões, como a de arranjar namorada ou a de encontrar um trabalho. 

Sempre amigo de cobertores, poltronas e abajures, não teria a reclamar de eventuais embaraços de locomoção.

Chegou a “melhor idade”, sem ironia. A miopia me livrou da necessidade de óculos para a leitura. Também posso agora ser rabugento à vontade.

Descobri, sobretudo, a fórmula mágica da felicidade senil. Consiste em dizer: “Não quero”. “Não vou.” Quantas vezes, ao longo da vida, inventamos desculpas —e terminamos acreditando nelas!

Alguém lhe convida para um churrasco de ex-alunos em Ibiúna. Lá está você gastando preciosos neurônios para se livrar do compromisso.

Claro que você tem inúmeras razões para não ir. Você prometeu (mas não é bem verdade) pegar o carro que estava na revisão (num domingo? Não cola). “Ah, vou viajar nesse fim de semana.” Meio velha, essa. E o pior, pelo menos no meu caso, é que às vezes eu acabava indo viajar mesmo —ou ficando gripado— só para tornar verdadeira a desculpa. Só para desesfarrapá-la.

Não era nem mesmo um problema de desculpas. Desde que o telefone foi substituído pelo email, ficou mais fácil mentir. Qualquer que seja a mentira dita aos outros, persiste o problema. Trata-se de saber o que dizemos para nós mesmos. “Eu bem que poderia ir, mas...” Lá vou eu “dando  tratos à bola”. Ou “pondo a cuca para funcionar”.

Eu tinha de terminar aquele texto... Precisava acertar aquele assunto com Fulano... Preciso dar uma caminhada... Vou comer demais nesse churrasco...

Por que enumerar tantos motivos, quando um só é o bastante? Não quero! Eis a melhor razão de todas, a que vence qualquer pretexto. O fato é que não costumamos invocá-la.

Melhor do que qualquer software de envelhecimento, minha idade avançada forneceu o  aplicativo perfeito, único, universal. É o botão do “não quero”.

Algumas obrigações, infelizmente, aumentam com a idade. Velórios, por exemplo. Muitas vezes, temos mesmo de comparecer. Curioso que, nessas ocasiões, sempre se pensa como a vida é curta, como é importante aproveitá-la etc.

Mas se achássemos isso, não perderíamos tempo no velório. Estaríamos ressuscitando, quem sabe, nosso antigo dom para dançar o twist, o hully-gully ou o chá-chá-chá.

De qualquer modo, melhor um velório do que um bailinho com luz negra. Minha fúnebre adolescência ficou para trás, e não passo mais pelas humilhações de então. E as humilhações do idoso não me atingiram ainda. Não cheguei ao ponto de vagar pelas ruas, esquecido do próprio endereço. Os mais espertos já sabem como fazer —cumpre tatuar no braço o telefone do parente mais próximo.

Por enquanto, estou autorizado a tudo. Tosses macabras num teatro, colisões de carrinho num supermercado, perguntas idiotas ao caixa do banco —há prazer nisso, e até certa maldade em se fazer de burro mesmo quando se sabe a resposta.

Uma coisa, entretanto, acho que nenhum velho tem o direito de fazer: contar 20 vezes a mesma história. Juro que me controlo nessa parte.

Um tio, muito bom nas narrativas absurdas do que acontecia com ele, não perdia a oportunidade de reencenar alguns de seus sucessos nos encontros de família. Ocorre que ele próprio estava cansado dos próprios causos, e com o tempo foi reduzindo-os ao mínimo.

Os detalhes bizarros se perdiam, a sucessão de eventos emagrecia e, por fim, tudo se formalizava em gestos e monossílabos como no teatro japonês. De Zola ao kabuki.

Mas o que é que eu estava dizendo mesmo? Ah, o aplicativo. Não, não é comigo. Último prazer: o de não saber mais como mexer no celular. Você poderia baixar para mim?

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