Siga a folha

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Ainda não me convenci de que existam generais democratas no Brasil

É preciso falar sobre o puxa-saquismo dos civis em relação aos militares ao longo da história do país

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Conheci um bom pedaço da ditadura (já estava grandinho no governo Geisel).

Nem vou falar dos horrores, das violências, dos desastres e das injustiças do período. Trato de uma coisa menor, mas que me deixa bem irritado ao ver repetida agora: o puxa-saquismo dos civis em relação aos militares.

Apareceu por toda parte nestes dias. “O general Fulano se recusa a participar de um golpe”: parabéns ao general Fulano. “Como nunca, os militares estão conscientes de suas funções constitucionais.” Que bom. Ainda bem. “O comandante Beltrano reafirma seu compromisso com a ordem vigente.” Nossa. Muito obrigado.

Quando chegamos a esse ponto, ponho as mãos na cabeça. É sinal de que nós, os civis, vamos deixando de ser sujeitos do processo político —e que depende deles, militares, a decisão de aderir ou rejeitar um projeto golpista.

“Não há clima para uma intervenção”, diz o general A; mas e se houvesse? Aí, imagino que não haveria declaração nenhuma —os tanques já estariam nas ruas. Parece evidente que, se não todos, muitos militares trabalham com essa hipótese. “Se tiver que haver, haverá”, disse o general Mourão em 2017.

Em 2018, o general Villas-Boas postou seu famoso tuíte alertando, por assim dizer, contra uma possível decisão do Supremo Tribunal Federal, o STF, em favor de Lula, falando de “repúdio à impunidade” e de um Exército “atento às suas missões institucionais”.

Dois anos depois, o general Augusto Heleno esbravejava contra outra decisão do STF, que possibilitava que Bolsonaro tivesse seu celular apreendido para investigações: haveria “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Ainda em 2020, o general Luiz Eduardo Ramos descartava um movimento militar: declarou que os comandantes militares achavam “ultrajante” essa hipótese. Mas logo acrescentou: “Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”.

Não são militares da ativa, certo. Pertencem à cúpula do bolsonarismo —ironicamente, à vertente “moderada” de um “freak show” de milicianos, malucos da conspiração, videntes e incendiários.

Não quero cometer injustiças com os três militares demitidos por Bolsonaro. Tudo indica que não quiseram aderir à demência presidencial.

Mas até hoje não tive notícia de chefe militar brasileiro visceralmente democrático. Só mudarei de ideia quando algum criticar o golpe de 1964.

Ao contrário, todo ano, no dia 31 de março, vemos pronunciamentos celebrando o movimento. Por quê? Afinal, não é feriado nacional, não é data religiosa, não é Dia Internacional da Mulher, Dia da Consciência Negra, aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Em 1964, os militares puseram tanques nas ruas sem que nenhum poder constitucional requisitasse a sua intervenção. Diante do fato consumado, a maioria do Congresso se curvou. O nome disso é golpe.

Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho de 7 de abril de 2021 - André Stefanini/Folhapress

Passaram-se mais de 50 anos, e não sei de nenhum militar que tenha feito a autocrítica dessa violência, ponto de partida para todas aquelas que se seguiram.

É o que disse Janio de Freitas, na Folha de domingo passado: “Enquanto faltar a coragem moral de reconhecer que antecessores seus cometeram crimes bárbaros e estrangularam as liberdades e demais direitos universais, os militares não estarão a serviço legítimo da sua função de Estado”.

Mas o que mais se vê é um movimento de reverência aos militares supostamente democratas. É a mesma auto-hipnose de quem repete que “as instituições estão sólidas”.

Estivessem sólidas, não estaríamos dando graças a Deus pelo fato de haver militares sem disposição para dar o golpe. Estivessem sólidas, não estariam parados os processos investigando o golpismo do presidente. Um dia acordaremos percebendo que as instituições que “eram sólidas” deixaram de ser.

Muita coisa diferencia o momento atual do que acontecia em 1964. Naquela época, o golpe não foi feito em favor de um projeto individual. As Forças Armadas, como um todo, tomaram o poder; não é a mesma coisa do que entregar o comando a um psicopata.

Além disso, não estamos vivendo um momento de agitação social, de “caos”, de “baderna”, como os militares gostavam de classificar os movimentos de esquerda.

Esses dois fatores correspondem, creio, à “falta de clima” para uma intervenção agora. Mas nada me convence de que os militares descartam a hipótese. Provavelmente, quem os elogia agora também irá elogiá-los nessa ocasião.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas