Quando Jair Bolsonaro fala em “mimimi” e choramingação diante da tragédia da Covid, não tenho dúvidas de que ele sofre de algum distúrbio de personalidade. O caso está próximo dos de Nero, Calígula e Gengis Khan.
Mas acho que também existem outros fatores envolvidos. Além da doença mental, Bolsonaro sofre de uma ilusão política. Pronuncia esse tipo de frase ao se encontrar com seus apoiadores. No fundo, sempre falou para uma minoria de fanáticos. Elegeu-se presidente sem mudar uma vírgula do seu discurso. Nada mais natural, agora, que continue apostando na retórica mais extremista e desumana.
Bolsonaro pensa que o grupo de malucos que ainda o festeja é o conjunto da população.
Falando para seus adeptos —e não para as pessoas que tiveram familiares mortos na pandemia—, ele se sente à vontade para desfazer da tragédia e rir do “mimimi”.
Não consegue ver além do círculo de dementes que o apoiam. Não teria muita razão para isso, aliás: não foi assim que ele se elegeu? Por que mudar de rumo se, agindo assim, tanta gente votou nele?
Mas a violência de seu procedimento não se esgota nesse vício político. Dois outros fatores, a meu ver, influem em seu extremismo, em sua insensibilidade, em sua baixeza.
O primeiro é a formação militar. Quem se lembra do filme “Tropa de Elite” (cujo sucesso foi um dos fenômenos que prenunciaram Bolsonaro) sabe da famosa frase do Capitão Nascimento: “Pede pra sair”.
O contexto era que, submetidos às piores experiências, só os realmente fortes se mostravam aptos a ingressar no Bope.
Quem é macho aguenta. Essa ideologia, que vigorava num batalhão policial dedicado à tortura e à morte, orienta Bolsonaro na crise da Covid. Como o capitão Nascimento, o presidente da República não quer saber de choramingas.
A estupidez militar de Bolsonaro se soma, entretanto, a outro fator, cujo “pedigree” intelectual ele certamente pegou de segunda mão.
Há um bom tempo ideólogos conservadores têm dedicado esforços a condenar a cultura do “mimimi”. Fernando Henrique Cardoso costumava desqualificar como “nhenhenhém” as críticas que recebia.
Em “Podres de Mimados”, o pensador britânico Theodore Dalrymple dá o tom dessa atitude. O livro, publicado pela É Realizações, traz como subtítulo “As Consequências do Sentimentalismo Tóxico”, e é um exemplo do conservadorismo “bem informado” e “inteligente” que faz sucesso por aí.
A fórmula é eficaz. Dalrymple escolhe algum exemplo especialmente maluco das suscetibilidades “politicamente corretas” para desqualificar um movimento que, na essência, é emancipatório e iluminista.
Condena a iniciativa de autoridades inglesas para que todos os “alunos” (“pupils”) passem a ser chamados de “estudantes” (“students”), mesmo quando tenham deficiências mentais. Para Dalrymple, esse paternalismo subverte os valores da verdadeira educação.
Ele reclama de um procedimento jurídico adotado na Inglaterra, a chamada “declaração de impacto”. Funciona assim. Uma mulher teve o marido morto por assaltantes; prevê-se que faça uma declaração no tribunal. “Meu marido (o morto) era maravilhoso, tinha talento para música, era bem-humorado, ótimo pai, lindo...”
Dalrymple implica: quer dizer que, se não fosse talentoso para música, poderia ser assassinado?
Reconhece-se facilmente a linha desse conservadorismo: trata-se de misturar a extrema rigidez de critérios racionais com um máximo de antipatia humana.
Dalrymple ataca o “sentimentalismo” contemporâneo. Diz, por exemplo, que é legítimo derramar uma lágrima, privadamente, nas passagens mais tristes de Charles Dickens. Mas que estamos em plena vulgaridade, e a um passo da barbárie, quando as pessoas fazem exibição de seus bons sentimentos.
Para ele, trata-se simplesmente de uma forma de autocongratulação. Pode ser. Mas ele se esquece que Dickens fez muito dinheiro lendo passagens de seus romances em teatros lotados.
O sentimentalismo de Dickens, embora esteticamente suspeito, foi importante contra a exploração do trabalho infantil. A duríssima mentalidade vitoriana, pronta a considerar os pobres culpados pela pobreza, aprendeu a ter mais compaixão.
Nada mais vulgar que esse direitismo pop. Imagine-se quando diluído e requentado nos porões intelectuais do bolsonarismo. E, depois, quando vem à tona nas falas de um analfabeto.
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