Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)
Existem vítimas para todos os lados
Estado de Direito deve prevenir tanto a complacência com o crime quanto a reação vingativa
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Rodolpho tinha 65 anos, era branco e médico. Ele e minha mãe moravam no Leblon dos anos 1990 e ensinaram-me a vida andarilha pelo bairro e os seus muitos restaurantes.
Rodolpho foi assassinado com vários tiros por um homem que conhecera pouco antes. Mais tarde, soubemos que era tragédia anunciada.
O homem era esquizofrênico e seu psiquiatra já havia alertado à família que era violento, possuía armas, podia ser um risco aos demais e deveria ser internado. A família ignorou o aviso. Depois do desatino, o homem se justificou dizendo que Rodolpho invadia seus aposentos pela televisão e roubava a sua alma.
Há muitas vítimas nessa história. Há a viúva que perdeu seu presente de uma vida. Há os filhos de um primeiro casamento e os incontáveis amigos. E há os filhos adotados, contrabando do segundo casamento. Ninguém próximo ficou incólume às balas da insensatez.
O contorno da história poderia ser diferente. Rodolpho poderia ser Maria, índio ou negro, mecânico ou empresário.
As novas gerações talvez não conheçam a expressão: para todo pé cansado existe um chinelo velho. Todo caixão inocente lidera uma despedida triste. Toda morte deixa saudades. Com o tempo, assistimos a mais enterros do que gostaríamos. Às vezes, há multidões se despedindo; em outras, são escassos os que lamentam. Cada velório revela a história de uma vida e as circunstâncias do fim.
A morte bruta de quem distribuiu afeto deixa sequelas ainda maiores. Há muitas vítimas em cada assassinato. São tantos, todos os dias.
Não nasci filho de Rodolpho. Em seu velório, despedi-me do pai que me inventou como filho, uma paternidade tardia, inesperada e generosa. Nossa despedida foi prematura, mas ao menos tivemos 20 anos de convívio. Sou grato pelo que a sorte me proporcionou.
No país da violência banalizada, são muitos os mortos pelo crime, por motoristas embriagados ou mesmo por pessoas com acesso a armas, apesar de diagnosticadas como esquizofrênicas e violentas.
As vítimas que pelas circunstâncias despertam comoção, como ocorreu com Marielle Franco, simbolizam os milhares de anônimos assassinados por razões inaceitáveis.
O Estado de Direito deve prevenir tanto a complacência com o crime quanto a reação vingativa que atropela possíveis inocentes. A política de segurança deve garantir a punição dos criminosos, de qualquer lado. Distintivo ou pobreza não são desculpas aceitáveis.
A indignação recente revela uma sociedade farta. Entretanto, as reações muitas vezes terminam por demonizar irresponsavelmente as vítimas ou os policiais, muitos dos quais arriscam a sua vida para nos proteger. Há caixões demasiados para todos os lados.
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