Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Marcos Lisboa
Descrição de chapéu

O ofício e a casa de Inez e de Alfredo

A velha geração do teatro esculpia cuidadosamente o seu trabalho para provocar e servir

A atriz Tônia Carrero, na década de 1950
A atriz Tônia Carrero, na década de 1950 - Arquivo Pessoal

As minhas pernas mal chegavam ao chão. Titia e eu sentávamos em duas pequenas poltronas em meio aos muitos livros que dominavam as estantes do apartamento interminável para uma criança. A velha senhora, com fama de brava e óculos quase a cair do longo nariz, conversava comigo sobre a literatura e o teatro.

A sala grande, e onde mais fosse possível, era invadida por incontáveis quadros, do chão ao teto e para todos os lados. Semanalmente, titio surpreendia-nos achando espaço para um novo trabalho dos seus muitos amigos ou de jovens artistas.

Menino, assistia a conversa entre meus tios e seus amigos Fernanda Montenegro, Barbara Heliodora, Jacqueline Laurence, Serpa, Iberê, Ítalo, Fernando Torres e tantos outros. O teatro estava em casa, assim como a pintura e a escultura.

A arte se esparramava pela sala em meio ao típico afeto carioca, emoldurado por opiniões assertivas. As mulheres invariavelmente dominavam a discussão: o bom senso volumoso de Fernanda, as idiossincrasias de Barbara e a gargalhada saborosa de Jacqueline, que parecia resguardar uma observação ferina insinuada pelo seu olhar anguloso.

Titia, irritadiça, sempre um tom acima. A sua erudição brotava como flores no mato, inevitáveis ainda que inesperadas. Havia a leitura de algumas gerações distribuída como bolinhos em auxílio dos argumentos. Se o caso era sobre irmãos, recordava Machado, e seu Esaú e Jacó, ou Thomas Mann, e seu longo e belo José.

Com titia aprendi a literatura que conta uma história da qual desconfiamos e a leitura atenta revela outra, como em Flaubert e Madame Bovary ou em Machado e Dom Casmurro. A velha senhora, altiva e austera, nascida em 1925, não sabia o que era preconceito. Era-lhe inconcebível comentar as escolhas íntimas dos demais. Nunca era tema se fulano optara por sexo assim ou assado, se era judeu ou muçulmano. Cada um sabe do seu quinhão.

Titia partiu com uma delicadeza surpreendente para quem conheceu a sua veemência. Aos poucos, foi se desligando do mundo. Seus olhos impacientes tornaram-se doçura distante. Em seu último aniversário, porém, quando os demais saíram momentaneamente da sala, resgatou a vivacidade de anos antes e me perguntou sobre a literatura e os amigos. Foi nossa despedida.

Tônia sabe do ofício, afirmara-me Titia anos antes. Tônia Carrero morreu semana passada.

A velha geração de marginais, como denomina Fernanda, esculpia cuidadosamente o seu ofício para provocar e servir ao público. O teatro ocasionalmente cheio pagava as contas. A nova geração, por sua vez, parece saber mais das leis de incentivo do que do ofício. A velha geração deixa herdeiros, mas não são muitos.

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