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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

O sol nasceu para toldos

A política dos coletes amarelos, bonés vermelhos, camisas negras e galinhas verdes

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O primeiro colete amarelo a gente nunca esquece. Quem o vestia era Paulo Coelho. Usava-o por cima da camiseta e da calça pretas. A seu lado ia a artista plástica Cristina Oiticica, também de colete amarelo. O plácido casal não protestava ou reivindicava.

Paulo Coelho portava um cajado. Nem de longe ele lembrava aquele que, na fuga do Egito, Charlton Heston usara para separar o mar Vermelho. Tampouco servia para pastorear —fosse o rebanho de almas ou ovelhas. Era noite no outono de 2003. Não havia no ar nada de político ou místico.

Conforme o prometido, o casal voltava a pé para o sítio depois de jantarmos num restaurante à beira da estrada. Estávamos na Gasconha, mas aquela não fora uma "promessa de gascão" --dito que debocha dos nativos, tidos por falastrões. D'Artagnan e Cyrano de Bergerac eram gascões.

O escritor e a artista cintilavam no breu dos Pirineus quando faróis açoitavam seus coletes --além de amarelos, eles eram acrílicos. O seu uso era obrigatório nas estradas do lugar. E não é que, 15 anos depois, a indumentária de Cristina e Paulo virou metonímia política?

Os coletes amarelos vieram dos cafundós e tomaram de assalto o marco maior do poder absolutista, o Arco do Triunfo napoleônico. Reativaram a política do vestuário para protestar contra a desigualdade, exercer a soberania popular, desafiar as forças da ordem.

O movimento nasceu na França profunda, mal vista pelas instâncias habituais da política, dos partidos ao Eliseu, dos sindicatos à imprensa.

Suas bandeiras, dizia-se, diziam respeito à roça: fim da taxa antipoluição; aumento do poder de compra; imposto pesado para as grandes fortunas.

Os bregobaldos incorriam assim em anátemas para a política séria, a realista. Queriam carros poluentes. Queriam consumir. Os ricões que pagassem a conta do déficit. O seu modo de expressão, acrescentava-se, era infantiloide: petições no Facebook, memes no WhatsApp.

Que nojo, eram todos populistas —presas tolas de demagogos. Por isso a sua agitação só ensejou comparações depreciativas: com a Jacquerie, a revolta dos jecas do século 14; com as guerras da Fronda, motins contra o poder absoluto do século 17, urdido por Richelieu.

Não dá para comparar a arruaça dos coletes amarelos a convulsões camponesas da Idade Média. Mas a pasmaceira de Macron lembrou a dos Capeto. De Napoleão, ele tem só a estatura. O Eliseu da República em Marcha lembra Versalhes.

Macron incrementou a crise que, juravam seus escribas, ele fora eleito para dirimir. Em vez de reformas, o pequeno Júpiter ofereceu a seus súditos Restauração: um agressivo governo pró-ricos, pomposamente antipobres.

Deu-se o mal estar. Ele serviu de combustível para faíscas que reluziram da Gasconha à Normandia. Os fosforescentes adotaram o mote que Lênin atribuiu a Bonaparte: a gente se engaja e depois vê. Dispunham do essencial, o uniforme amarelo-limão da rebeldia.

Eles ocuparam as rotatórias de estradas vicinais e de rodovias. Nelas acamparam e organizaram a marcha sobre Paris: caronas, ônibus fretados, ocupação de trens. As rotatórias serviram de ágoras, praças públicas para o papo e o voto que precedem a ação.

Ao pichar o Arco do Triunfo, os coletes encolerizados ecoaram os sans-culottes que, em 1792, invadiram as Tulherias. Além das pantalonas folgadas, que contrastavam com as calças culote dos mauricinhos, a ralé jacobina usava bonés vermelhos, típicos da Frígia libertária, na Grécia.

Macron viajara a Buenos Aires, para o piquenique do G20, mas Luís 16 estava nas Tulherias quando a multidão tomou o palácio. Obrigaram-no a pôr o boné frígio e a erguer um brinde à Nação. O rei por direito divino era cidadão. "Ele deve reinar ou morrer", disse Saint-Just ao mandá-lo para a guilhotina.

Política implica enfrentamento, violência. Ela pode ser retórica, virtual e física. Política é guerra de palavras, de memes, de fake news, emprega até milicos de verdade. Quanto mais bélica fica, mais a política precisa de signos —de códigos que distingam as tropas em conflito.

Os coletes amarelos serviram de toldo para o sol da violência. Tomaram o Arco do Triunfo e sacudiram o status quo. Macron concedeu-lhes benesses aparentes —o Estado será desmontado mais um tantinho para que os ricos possam auferir ganhos financeiros e hereditários.

Em sendo assim, poderão vir aí os camisas pretas de Mussolini. As milícias marrons de Röhm. As túnicas negras da SS de Himmler. As galinhas verdes de Plínio Salgado.

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