Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti

Editocracia na Hitlerlândia

'Berlin, 1933' conta como a imprensa cobriu a chegada do nazismo ao poder

No dia que Hitler foi nomeado chanceler do Reich, 30 de janeiro de 1933, havia 135 correspondentes europeus e americanos sediados em Berlim. Até o início da Guerra Mundial, seis anos depois, só meia dúzia dos jornalistas foi enxotada da Alemanha pelos nazistas. Por que tão poucos?

A pergunta provoca outras. Os correspondentes entenderam a natureza do nazismo? Adaptaram-se ao novo poder? Foram coagidos? Seu salário valia mais que a honestidade? Contaram aos leitores o que de fato se passava na Alemanha?

"Berlin, 1933: La Presse Internationale Face à Hitler" (Seuil, 446 págs.) dá algumas respostas. Lançado há dois meses na França —e inédito aqui—, o livro de Daniel Schneidermann reproduz o que saiu em jornais americanos, ingleses e franceses, bem como as memórias dos correspondentes.

Da trombada entre as reportagens no calor da hora e os especiosos livros de memória brota a primeira conclusão de "Berlin, 1933": jornalistas tendem a ficar perspicazes décadas depois das notícias.

Já as desculpas para a omissão são imutáveis: cultivar fontes (para obter uma entrevista "humana" com Hitler); pressionar moderados (Goebbels e Göring viram liberais); ser construtivo (a recuperação econômica importava mais que prisões políticas).

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Schneidermann é o comentarista de imprensa mais ranheta da França. Ombudsman do Le Monde, ele foi demitido por criticar o diretor do jornal. Criou um programa TV de sucesso entre não jornalistas, Arrêt sur Images, que depois virou um site cri-cri. Sua fama de chato vara fronteiras.

Não lhe basta afirmar que em determinado dia, de tal ano, no jornal tal, foi feita a primeira menção a Hitler na imprensa americana, e ela diz o seguinte. A objetividade é para os fracos. "Berlin, 1933" começa com parágrafos telegráficos, de extenuante literatice:

"Um Mussolini alemão.

Três palavras.

Essas três palavras foram exumadas de um jornal americano dos anos 1920."

Em que pese a xaropada, o livro é precioso —se é que a exposição da hipocrisia pode ser preciosa. Tanto que toda imprensa sabia, dez anos antes de Hitler ser chanceler, que ele era um golpista violento. Prometia destruir os inimigos e a democracia —e a revista Time o chamava de "handsome Adolf".

Hitler era Mussolini, mesmo. Mas foi tratado pela nata dos jornalistas como um político legítimo, pois que eleito. Em julho de 1933, ele deu uma longa entrevista à correspondente do New York Times. Seu título: "Hitler procura empregos para todos na Alemanha".

Anne McCormick contou que o chefe nazista vivia num apartamento "simples". Era um "tímido", de voz "tranquila" e "a mão sensível de um artista". Levava em conta as "críticas honestas", admirava Roosevelt e Ford. Suprimira "os velhos partidos" porque queria um "novo parlamento".

Maravilha. Mas milhares de socialistas e comunistas haviam sido encarcerados sem processo. Criara-se o campo de concentração de Dachau. Leis racistas foram baixadas, de modo a que só arianos pudessem ser funcionários públicos. O boicote às lojas de judeus entrara em vigor.

Talvez por isso a correspondente do New York Times tenha encaixado uma pergunta sobre judeus na entrevista com Hitler: "Como avalia os aspectos positivos e negativos da sua política antissemita?". Schneidermann não se espanta com a editocracia do jornal, cujo dono era judeu. A comunidade judaica se dividira, diz ele.

Uns propugnavam a resistência aberta; outros, a cautela acomodatícia. Nesse último time estavam o New York Times, o correspondente do Les Temps em Praga, Beuve-Méry (que viria a criar o Monde), e Raymond Aron, que reprovou a "falta de prudência" dos judeus.

Schneidermann ataca essa linha de raciocínio por motivos políticos e jornalísticos. Ele demonstra, com inúmeros exemplos à mão, que o único jornal a defender a democracia na ascensão do nazismo revelando quem era ele foi o L'Humanité, do Partido Comunista Francês.

Faz isso apesar de ter horror à imprensa engajada. Mas reconhece que as vítimas, por meio da sua imprensa, são as que melhor podem se defender. Foi por isso que, nos primeiros dias de Hitler, o L'Huma defendeu os comunistas, mas não os judeus. Por isso, anos depois, defendeu Hitler, quando ele fez um pacto com Stálin.

Está certo. Ainda assim, relembre-se o nome de Edgar Ansel Mowrer, o correspondente do Chicago Daily News em Berlim. Foi expulso pelos nazistas meses depois de Hitler tomar posse. Escreveu um livro de título profético: "A Alemanha Volta Atrás no Tempo".

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.