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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Hoje a coluna é diferente: Mario desenha e Bruna, a ilustradora, escreve

Como é viver de outro jeito e ser artista numa vila lá longe

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Oi. Sou Bruna Barros. Todo sábado faço a ilustração da coluna do Mario. Hoje decidimos mudar: eu escrevo o texto e ele faz o desenho. Por quê? Porque estou vivendo uma experiência bem legal.

Sou de Timóteo, em Minas, e moro em São Paulo, num sobrado na Pompeia com o Allen, que veio de Sergipe e é músico. Temos três gatos. A pandemia nos pegou em cheio.

Mudamos para o sertão porque São Paulo ficou difícil com a doença, o aluguel é mais barato e senti uma grande vontade de tentar outra maneira de viver.

Viemos para Ilha do Ferro. É um vilarejo de uns 450 moradores onde muitos vivem de artesanato. Fomos de avião até Aracaju e de lá viajamos uns 200 quilômetros por asfalto, rio e terra.

O carro deu uma lapada e os gatos se lamentaram nas suas caixinhas. Tudo estava verde, o riacho corria sob uma ponte que não dava para saber se era uma obra inacabada ou um pedaço de asfalto que esborrachou. Me perguntei: que loucura foi essa que inventei?

Pequenas casas despontaram entre catingueiras, parabólicas, pés de xique-xique e mandacaru. O rio São Francisco surgiu, azul e majestoso. Nossa casa é como as fotos na internet: janelas pequenas, telhado de duas águas, sem forro. O quintal é puro mato, desordenado e habitado por gatos de rua.

Saímos para dar uma volta. Na mercearia havia uma placa: “Proibido entrar sem máscara”. Até na rua a ordem era respeitada. Com o aluguel oito vezes menor que o de São Paulo, e os gastos mensais reduzidos, podemos respirar. Somos um casal de artistas no Brasil da pandemia.

A doença trouxe prosperidade ao lugar. As pessoas aproveitaram o auxílio emergencial para pôr sonhos em prática: um barzinho na beira do rio, um quarto para os filhos, umas cabeças de gado.

Mesmo um tempão depois de chegarmos, continuamos a ganhar presentes dos vizinhos. Eles dão mel, abóbora, mamão, couve, tomate-cereja, quiabo, banana, feijão de corda e prosa, muitos dedos de prosa.

Começamos a cuidar do quintal e nosso vizinho ajudou. Ele é jardineiro, e também artesão e às vezes pedreiro: aqui todos fazem tudo. Enquanto metia a enxada no chão seco e cheio de pedras, ele dava um risinho ao ver nossa inabilidade.

Com os meses, o verde da paisagem sumiu. O sol queima a pele e resseca tudo. As máscaras também desapareceram. As pessoas dizem: “Quem tinha que pegar já pegou”, “tá uma confusão danada com esses testes”. Muitos desconfiam da vacina, dizem que não irão tomá-la.

Acordamos cedo e varremos a casa. É uma luta lidar com a terra que entra com as ventanias. Acabei um projeto de ilustração, comecei outro e montei um ateliê. Ele fica na sala, com portas e janelas para a rua. Allen fez um estúdio no quarto.

Uma vizinha de 13 anos começou a entrar. Ela gosta de organizar os materiais: pincéis com pincéis, tintas com tintas. Dois meninos, que passam na porta tocando gado, também gostaram da nossa casa e deixo que pintem.

Surgiram outros dois garotos. Eles adoram violão e vão direto para o estúdio do Allen. Tem dia que passam três vezes. Os violões são maiores que eles. Todas as crianças usam celular. Só a música e o desenho fazem com que desgrudem deles.

São tantas as crianças que tive de mudar o ateliê. Só no primeiro dia vieram umas 20. Consegui uma casa emprestada e as meninas ajudaram a levar o material para lá. Com o dinheiro que arrecadei no Instagram comprei aquarela, nanquim, tinta acrílica e muito papel.

Cada dia elas chegam mais, têm de três a 20 anos. Quanto menor a criança, maior a fluidez e a liberdade dos desenhos: assim como a fala é uma continuidade da boca, o desenho é uma continuidade da mão.

Não sei o que os pais pensam do empenho das crianças. Também não sei. Mas acho que o mundo devia ter mais fé na arte.

Na eleição, a cidade se dividiu entre a chapa verde e a lilás. Todos sabiam os jingles, mas ninguém falava de saneamento, um problema enorme. A meninada torcia pelos lilás. Um deles explicou: “Os verdes pegaram o dinheiro da merenda escolar e passamos um ano comendo melancia”.

As promessas de campanha eram emprego e “dinheirinho pro lanche”. No dia da votação, a cidade parecia “Bacurau”: deboche, lacração e cerveja. E nada de política.

Allen joga futebol num campinho da vila ao lado e faço anotações do que vejo. À noite, gosto de sentar na janela do quarto e ficar olhando o céu estrelado. A cantoria que vem da igreja evangélica se mescla com estrilados, coaxados e zumbidos. Estou feliz de estar aqui.

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