Nos primeiros filmes, Kleber Mendonça Filho fala de um Nordeste que troca o engenho pela orla do Recife (“O Som ao Redor”), a tradição e a memória pela especulação (“Aquarius”) —um Brasil que se transforma rapidamente, supera contradições e cria outras.
“Bacurau” representa uma guinada. Primeiro, por incluir um codiretor (Juliano Dornelles). Segundo, porque volta ao sertão profundo. Terceiro, porque substitui o realismo por aquilo que Ismail Xavier já chamou de “alegoria do subdesenvolvimento”.
É um filme presumivelmente concebido no alvorecer na era Temer (nunca esquecer do “Fora, Temer” que a equipe do filme estampou em Cannes) e pronto para ser exibição na conturbada era Bolsonaro.
Sim, estamos em Bacurau, cidadezinha perdida no oeste de Pernambuco. Lugarejo que depende de um caminhão-pipa que lhe supra de água potável.
É nesse lugar que começam a ocorrer mortes a princípio misteriosas, mas só a princípio. Fica claro que é um grupo de estrangeiros, associados a alguns brasileiros do Sudeste que estão comandando a ação.
Por que decidem tomar Bacurau? Não é claro. Entramos no registro do que se pode chamar de faroeste contemporâneo. De um lado, invasores. Do outro, resistência. As bazucas dos invasores têm força. Mas o espírito combativo do sertanejo não se deixará abater.
Ao simpático Pacote (Thomas Aquino) juntam-se Teresa (Barbara Colen), a médica Domingas (Sonia Braga) e até o renegado Lunga (Silvero Pereira).
Em poucas palavras, Mendonça troca a sutileza pela clareza alegórica da era Temer e depois. Aqui, o Brasil é um pais invadido por estrangeiros associados a brasileiros. Quem quiser salvar a alma terá que enfrentar esse desafio.
Um filme claro e direto. É justo perguntar se ganha ou perde a filmografia com essa mudança. Os ganhos são evidentes: o prêmio do júri em Cannes significou o reconhecimento internacional maior ao trabalho.
No conjunto da obra, admita-se que se adequou ao espírito do tempo, ao qual o cineasta (e Dornelles) se opõe claramente. Mais do que isso, é preciso lembrar que, em relação a “O Som ao Redor”, seu filme seguinte, “Aquarius”, patinava: de certo modo repetia-se, de outro modo retraía-se.
O ataque direto (ainda que pela alegoria), a alusão a um país que se quer pacífico, mas se revela sanguinário, são novidades, como a ausência de meios-tons. “Bacurau” é um filme feito com raiva, deixa a observação das contradições para mergulhar no conflito moderno e primitivo que o filme encena. As armas mudaram; o espírito, nem tanto.
Se o cinema de Mendonça Filho ganha ou perde, é cedo para dizer. A visão é, em todo caso, obrigatória.
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