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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

A tecnologia do novo 'Avatar' reduz a natureza a um parque aquático

Ninguém vai à Disney, ou vê o filme, para criticar as imagens dominantes da sociedade do espetáculo

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"Avatar: O Caminho da Água" ecoa "Moby Dick", no qual uma baleia amputa o capitão obsessivo. Como em "Transformers", há seres híbridos, produtos da fusão de máquinas e marines. Seu vilão é um "Rambo" que dizima espécimes de um povo nativo.

As afinidades são maiores com outros filmes de James Cameron. Como "Titanic", ele converge para um naufrágio. Como "O Exterminador do Futuro", o bandido vem de outro tempo para dizimar o mocinho. Como "O Segredo do Abismo", boa parte da fita transcorre debaixo d’água.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti - Bruna Barros

É gritante a semelhança com o primeiro "Avatar", filme pouco memorável de 2009, apesar de ter angariado quase US$ 3 bilhões nas bilheterias. Ambos se passam em Pandora, planeta que a humanidade quer colonizar porque exauriu a Terra.

O dínamo dos filmes é a oposição entre alta tecnologia e vida natural. Como nove em dez resenhistas notaram, convivem em Cameron impulsos opostos. Ele é natureba, um enlevado pela vida pacata e mística, mas que se extasia com armas, explosões, carnificina.

A novidade é a vitória dos bons sentimentos no conteúdo do filme; e o triunfo acachapante da técnica desumanizadora na sua forma.

Na vida real, o filme arrecadou US$ 1,5 bilhão desde a estreia em dezembro, sendo o mais visto em 45 países. Ultrapassou "Top Gun: Maverick" em 15 dias, que, contudo, estreou em maio. É uma máquina de fazer dinheiro.

Na vida imaginária, o elenco teve as feições e corpos transformados em bonecos robóticos —com as vozes irreconhecíveis de Sigourney Weaver e Kate Winslet. Foi melhor assim porque os diálogos doem no ouvido: "A família é nossa fortaleza". O ritmo oscila entre espichado e o apressado. A direção é burocrática.

Resta o visual de "O Caminho da Água". Em relação ao primeiro "Avatar", a inovação está no cenário passar das florestas para o mar. Quando os humanos ocupam a mata, a família de um clã foge para um atol onde mora outro povo, talvez da mesma espécie.

É um pessoal verde que vive semissubmerso. Eles têm orelhas pontudas, tatuagens aborígenes, se enfeitam com conchas, veneram baleias, cavalgam peixes alados e ficam à toa no atol. Ninguém trabalha.

Cameron tem brevê de mergulhador profissional. Construiu um submersível e desceu os quase 11 quilômetros das Fossas Marianas, indo onde ninguém fora antes. Tinha ciência e meios para construir uma paisagem marinha opulenta, realista ou imaginária.

No entanto, o atol de "O Caminho da Água" lembra um resort no Caribe. Sua vida marinha é rasa, não chega às profundidades de "Ponyo", de Miyazaki, ou de "Procurando Nemo", de Stanton. Eles puseram a tecnologia a serviço da criatividade, inventaram um panorama aquático que mimetiza a fantasia infantil —inclusive com seus medos e maldades.

Já Cameron "disneyficou" praias e mares. Seu modelo é a Disney, que produziu "O Caminho da Água" e fez um "espaço Pandora" na Flórida. Com isso, o filme busca os sustos, o suspense e frios na barriga de um parque de diversões. Está mais para Wet’n Wild que para cinema. Tchibum, um Big Mac, splash, uma Coca, uma última ida ao escorregador.

Enquanto um parque aquático vende diversão lisamente, e o esquecimento da vida lá fora por algumas horas, o filme recorre à ideologia para se justificar. Que o ideário seja o da recusa à exploração da natureza é sinal de má consciência, e não uma atitude política.

Mas ninguém vai à Disney, ou vê "Avatar", para criticar as imagens dominantes da sociedade do espetáculo, ainda que absurdas. Isso é coisa de comunistas, esses eternos insatisfeitos. As pessoas vão se divertir, desfrutar do ambiente gerado pela tecnologia de ponta.

Na história do cinema, porém, os avanços técnicos com frequência corresponderam a ganhos artísticos e ao alargamento da sensibilidade. Sem tecnologias inovadoras não haveria "Cidadão Kane", "E o Vento Levou" ou "2001: Uma Odisseia no Espaço".

Neste último, Stanley Kubrick mostrou a Terra vista do espaço com mais nitidez e beleza que os astronautas da Apolo 8, e antes deles. Repetiu a tecno-criatividade em "Barry Linton", agora se inspirando nas pinturas de Hogarth e Gainsborouh para voltar ao século 18. Usou a tecnologia para revelar, maravilhar, filosofar —e entreter.

Já James Cameron tem mais três sequências de "Avatar" na linha de montagem, a serem lançadas até 2028. Insiste na tecnologia 3D, com a qual, todavia, jamais foi feito um filme que preste. É o que acontece quando a indústria determina a arte.

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