Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
Um porre de megalomania e desorientação nas 'Memórias' de Alain Badiou
Se não fosse ridícula, última frase do livro seria até tocante
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Alain Badiou é um filósofo, romancista e dramaturgo francês que nasceu no Marrocos. Um dos fundadores da Universidade de Vincennes, é professor emérito da prestigiada Escola Normal Superior. Tem 86 anos e escreveu mais de cem livros. Sim, cem.
Um deles, "O Ser e o Evento", foi traduzido urbi et orbe e é considerado, ao menos num punhado de faculdades norte-americanas, um marco da filosofia. A obra e a idade, contudo, não lhe conferiram a aura de sábio. Porque, além de estar na contracorrente, Badiou é um provocador.
É com cadência mensal que pontifica na imprensa. Quem poderia dizer algo controverso sobre a imigração de africanos e árabes, que incitou a xenofobia e a extrema direita na França? Chama o Badiou. Ele se apossa do microfone e não profere a palavra migrantes; prefere "proletariado nômade".
Diz que a classe sem nação é feita de trabalhadores e famílias miseráveis que fogem de guerras; arriscam-se a naufragar no Mediterrâneo; são tidos como terroristas islâmicos pela cristandade; clandestinos, têm de aprender uma nova língua; caçados pela polícia, são enxotados de volta.
Alguém tem algo a declarar sobre eleições? Badiou tem. Fala que esquerda e direita se alternam desde o pós-Guerra e engessaram a França; que Mitterrand, Giscard e Sarkozy gerenciaram um declínio contínuo; que a democracia ilude, piora a vida do povo, e é preciso melhorá-la já.
Como palpita em tempo integral, às vezes é instigante. Suas ideias sobre feminismo e ecologia, por exemplo, afrontam a catilinária consensual em voga; não aderem à ideologia patriarcal nem ao lero-lero desenvolvimentista.
Badiou vem de publicar na França "Mémoires d'outre-politique" (memórias d’além-política). O livro combina a exposição –detalhadíssima– de suas atividades inconsequentes com uma petulante autoglorificação.
Resumindo-o: como fez tudo certo na teoria e na prática, é irritante que a esquerda, a França, a Terra e Sistema Solar não tenham percebido. Coquetel de empáfia com voluntarismo, é um porre de megalomania.
Badiou é maoísta, apesar de a China ter abandonado o grande timoneiro há quase meio século. Seu ideário é o dos dez anos da Revolução Cultural, iniciada em 1966. Foi quando, contestado pela direção do Partido Comunista, Mao atirou a juventude contra ela. Uns 20 milhões foram assassinados.
"Mémoires" tem incontáveis citações do "Livrinho Vermelho", o missal maoísta: contradições no seio do povo; o imperialismo é um tigre de papel; ousar lutar, ousar vencer. São citações abstratas, não têm nada a ver com a China.
O fulcro do livro é uma França específica, a de maio de 1968. Ele era professor de liceu em Reims. Um dia, participou de uma passeata estudantil até uma fábrica, onde confraternizou com operários. Como o apóstolo Paulo na estrada de Damasco, Badiou teve um troço, viu a rubra luz: Mao.
Tinha 31 anos. Para os padrões da época, era um tiozinho com percurso típico de intelectual francês. Defendera tese, publicara um romance, militava num partido de esquerda, o Socialista Unificado, casara-se e procriara. O futuro era previsível, ainda que bifurcado.
Podia seguir a carreira universitária e se tornar chefe numa faculdade de filosofia, um burocrata autor de livros. Ou então faria política como o pai, um herói da Resistência que fora prefeito de Toulouse por 14 anos; seria eleito para algo no Estado. Maio e Mao o mudaram.
Foi transferido para Paris, largou família e prole e se entregou às delícias do sectarismo puro e duro. Fundou a portentosa União dos Comunistas da França (marxista-leninista). Ele e um amigo ocuparam os cargos de direção do grupúsculo; duas amigas serviram-lhes de base.
A primeira missão, crucial, era combater a revisionista, e portanto pestilenta, Esquerda Proletária, outra seita maoísta. A União dos Comunistas também tumultuava peças de teatro e filmes reformistas –como "Lacombe Lucien", de Louis Malle, coitado.
Badiou relata essas coisas com orgulho. De passagem, porém, conta que, no auge, a União dos Comunistas teve 600 aderentes, a maioria estudantes. Como o grupo acabou, ainda bem que não abandonara a universidade. Pôde ser aquilo para o qual estava fadado: professor e autor.
Na última frase, na qual anuncia o segundo volume das "Mémoires", Badiou promete "clarificar o que deve ser, e será, a próxima etapa do comunismo universal". Se não fosse ridícula, a frase seria tocante. Mostra a quantas anda a desorientação na terra de Montaigne, Rousseau e Sartre.
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