Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Livros

'Com Amor e Fúria' parece velhíssimo porque lida com a verdade da arte

Não é indiferente que o filme tenha sido dirigido por uma mulher, mas obra não recorre à identidade do lugar de fala

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"Com Amor e Fúria" é um dos filmes mais intrigantes dos últimos tempos. É tão novo que parece velhíssimo. Tem o desplante de prescindir de efeitos especiais, piadinhas infantiloides, diálogos espertos, arranca-rabos, ênfases. Não tem nada de espetaculoso. É grave, adulto.

Ele começa com o vagaroso idílio de um casal num mar turquesa, filmado de perto, um metro acima ou abaixo da linha d’água. A sensação de intimidade é total. Ainda mais porque Sara e Jean são interpretados por atores admiráveis, Juliette Binoche e Vincent Lindon.

Corta. A paisagem paradisíaca dá lugar à feiura de um entroncamento de trens de periferia e um túnel de metrô. A amplidão natural é substituída pela urbanidade claustrofóbica, atulhada de vidros, paredes e diálogos que separam as pessoas, impedem que se reconheçam.

O congraçamento no mar do amor foi um parêntesis. O que vale é o cotidiano engarrafado por automóveis, objetos, trens, ruas, salas e falas com frases banais. A Paris da diretora Claire Denis se contrapõe à estética dos cartões postais com que a cidade é comumente apresentada.

A ilustração, feita a partir de uma cena do filme “Com amor e fúria” apresenta uma cena romântica de homem segurando uma mulher enquanto esta boia na água.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti - Bruna Barros

A música e a fotografia de "Com Amor e Fúria" insinuam que algo vai mal no dia a dia de Jean e Sara. O violoncelo inquietante da banda inglesa Tindersticks sugere perigos e violências iminentes. O visual é fosco —como se véus apartassem os personagens uns dos outros.

É por meio de conversas indiretas que o passado deles e a trama do filme ficam nítidos. Jean é um ex-jogador de rúgbi que cumpriu pena por falcatruas indefinidas e está impedido de usar cartão de crédito. Tem um filho adolescente que mora com a avó (Bulle Ogier). O garoto, Marcus (Issa Perica), fracassa na escola e furta a boa senhora.

Sara é apresentadora de um programa de rádio em que faz entrevistas sobre notícias da atualidade, como a crise no Líbano e o racismo na França. Ao entrar no trabalho, um dia vê um antigo amante, François (Grégoire Colin). Ele também era amigo de Jean, mas não o vê desde a prisão.

É ao acaso, com alusões e elipses, que se percebe um pouco dos personagens. Jean é um suburbano que vai à periferia até para fazer supermercado e pôr combustível no carro. Marcus diz que não subirá na vida porque é negro. Contudo, seu pai o considera mestiço e diz que ele está fugindo de si mesmo, da sua identidade.

Já Sara, que parece viver num casamento perfeito, reata seu caso com François. O coração do enredo acaba sendo o triângulo amoroso, um tema caro ao realismo do século 19 —de "Madame Bovary" (1856) a "Dom Casmurro" (1899) e "Ana Karenina" (1878).

À maneira do romance de Machado, interessa menos se Capitu traiu ou não Bentinho. O triângulo serve de motor para os verdadeiros temas de "Com Amor e Fúria": a ambiguidade, o desconhecimento dos motivos das pessoas, a opacidade de tudo e todos numa situação social concreta.

O filme busca a indeterminação. As cenas são desmentidas pelo que Jean e Sara dizem; sequências são posta em xeque pelas que vêm a seguir; o racionalismo dos diálogos vira emoção descabelada. Todos têm razão, se bem que nunca inteiramente. A realidade é esquiva.

Mesmo a traição de Sara, que se concretizaria num beijo furtivo, se torna um ato oco porque o espectador acabou de contemplá-lo. Mas cada qual o encara de maneira diversa, a começar por Jean e Sara, depois por Binoche e Lindon, pela diretora e pela crítica, e por fim pela plateia. Ninguém se entende.

As ações dos outros passam pelo crivo de quem as sofre e de quem as vê. Não é indiferente que o filme tenha sido dirigido por uma mulher, e não por um marmanjo como Tolstói, Flaubert ou Machado. Mas Claire Denis não recorre às identidades do politicamente correto e do lugar de fala.

Nos momentos de tensão, nos quais Lindon e Binoche lembram esfinges vivas, parece que Jean e Sara são habitados por discursos que lhes são exteriores. Não dizem suas verdades; adotam falas das quais não são sujeitos; são outros, e não eles. A autenticidade inexiste.

As ambiguidades e enigmas da identidade percorrem "Com Amor e Fúria" do começo ao fim. A opressão patronal (Jean e François), o machismo (Sara e Jean) e o patriarcalismo (Marcus e Jean) não nascem das suas almas ou da natureza humana.

Tampouco cabem em arengas objetivas, duvidosas porque históricas e redutoras. Claire Denis tem apenas verdades complexas a oferecer: as da arte. A arte que parte da materialidade dos corpos de mulheres e homens, dos seus anseios cegos, e não da ideologia.

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