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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Romance de Ariel Dorfman discute se a morte de Allende foi épica ou trágica

Escritor lança 'The Suicide Museum', livro de autoficção em que conjuga política e catástrofe ambiental

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Salvador Allende estava na contracorrente quando foi eleito presidente, em 1970. Divergia da esquerda latino-americana, que, com o triunfo da guerrilha cubana, aderira à luta armada. Fidel Castro deu-lhe de presente uma AK-47

Morto, Allende está totalmente ultrapassado. Não só por ser marxista, mas porque quis conciliar democracia e revolução, socialismo e eleições. Como a Casa Branca, o empresariado e os militares de Pinochet discordavam dele, derrubaram-no. Todos o esqueceram.

Ariel Dorfman, não. O escritor nasceu na Argentina, passou a infância nos Estados Unidos e se radicou no Chile, para onde seus pais escaparam ao serem perseguidos pelo macartismo. Publicou 38 livros de ensaios, poesia, romances e memórias.

O mais vendido foi "Para Ler o Pato Donald", escrito com o sociólogo belga Armand Mattelart em 1971. É uma análise perfunctória e hilária dos personagens de Walt Disney – Mickey, Minnie, Patinhas, Pateta e caterva.

Eles são vistos como encarnações ideológicas do puritanismo, da agressividade e do mercantilismo; bichos antropomorfizados que, sem pai nem mãe nem sexo, passam a perna uns nos outros e entesouram. O livro tem lá sua graça. Os Estados Unidos, pátria da livre expressão, o censurou.

O mais prestigiado foi "A Morte e a Donzela", peça cujo tema são as sevícias perpetradas pelos militares latino-americanos e a vingança de uma vítima. Foi encenada com sucesso mundo afora e Polanski fez dela um filme. No Chile, fracassou.

Ilustração de Bruna Barros - Folhapress

No 11 de setembro passado, cinquentenário da morte de Allende, Dorfman lançou "The Suicide Museum" (sem tradução para o português). Deve ser uma despedida, pois ele tem 81 anos e escreve no epílogo: "Logo estarei morto".

É um romance histórico que embarca no modismo da hora, a autoficção. O narrador se chama Ariel Dorfman, conta trechos da vida do autor, tem a mesma mulher, filhos e amigos – mas é um personagem.

Tudo é absurdo e real quando Pinochet sai do poder à maneira latino-americana, com regalias e adulação civil. O luto e a melancolia predominam.

Seu fulcro é a morte de Allende, saber se ela foi trágica ou épica. Se ele se suicidou quando a milicada invadiu a tiros o Palácio de La Moneda, foi porque teve medo e se acovardou. A gangue de Pinochet alardeou a versão trágica já no 11 de setembro.

A versão épica é corroborada pela sua última foto, de capacete e fuzil na mão, talvez a AR-47 que ganhou para defender a revolução. Sua resistência heroica foi divulgada por Fidel Castro depois de ouvir companheiros e familiares de Allende.

Dorfman trabalhava em La Moneda, mas não foi lá no dia do golpe. Trocara o plantão com um colega, que foi fuzilado no seu lugar. Como conhecia muita gente, sabia que o presidente perguntou a um assessor se estava com medo, e ele respondeu: "Estoy cagado de miedo". Todos riram.

Sabia que o almirante Patricio Carvajal, um dos chefes do putsch, telefonou a Allende e lhe ofereceu um DC-6 para que ele e a família saíssem do Chile. O presidente respondeu: "Usted puede meterte ese avión en el culo". Ao desligar, xingou os traidores de "maricones".

Sabia que Carvajal veio a se suicidar. Sabia que Laura e Beatriz, uma irmã e uma filha de Allende, se mataram no exílio, em Havana. Uma se jogou do 18º andar e a outra se disparou uma Uzi, também presente de Fidel. Mas Dorfman não sabia como o presidente de fato morrera.

No romance, um bilionário do setor de plásticos tem uma iluminação tão súbita quanto óbvia: enriqueceu poluindo o planeta. Para se penitenciar, quer construir um Museu do Suicídio, a fim de convencer os visitantes que a humanidade está se matando.

O fim de Allende terá destaque no tal Museu porque servirá de exemplo, ou contraexemplo, para o suicídio coletivo dos habitantes do Planeta. O bilionário paga toneladas de dólares para Dorfman descobrir a verdade daquela morte.

Poucas vezes se viu um enredo tão inverossímil. Contudo, "The Suicide Museum" toca em algo presente e urgente ao conjugar política e catástrofe ambiental. A generosidade e o radicalismo de Allende têm algo a dizer aos problemas de hoje?

Sitiado em La Moneda, ele fez um último discurso. Disse: "Saibam vocês que, muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes avenidas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor".

Foi uma linda profecias, mas desde então o homem livre não deu as caras e as avenidas continuam bloqueadas. Se abrirem, será talvez demasiado mais tarde.

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