Siga a folha

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Descrição de chapéu

Índia enfrenta uma dupla crise econômica e política

Desaceleração no crescimento foi dramática, e a política passou por uma virada ao autoritarismo

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

A Índia está passando por mais uma transformação. Quando primeiro visitei o país, na década de 1970, a Índia era impressionantemente democrática —com exceção do período conhecido como “A Emergência”, imposto pela então primeira-ministra Indira Gandhi entre 1975 e 1977. Mas a economia crescia devagar demais.

Depois da crise do balanço de pagamentos de 1991, a Índia introduziu reformas radicais. Nas duas décadas que se seguiram, sua economia começou a crescer mais rápido, enquanto o sistema político se mantinha robustamente democrático.

No entanto, depois da crise financeira da década passada, o crescimento se desacelerou. A política da Índia também está mudando, para uma forma agressivamente não liberal de “majoritarismo”. Essas mudanças gêmeas não são para melhor.

Arvind Subramanian, que foi o principal assessor econômico do governo de seu país, é coautor de um estudo sobre a desaceleração da economia, depois da crise. O estudo aponta que todos os indicadores importantes –investimento, crédito, lucros, arrecadação tributária, produção industrial, exportações e importações– enfraqueceram significativamente desde a crise financeira. Mas o crescimento econômico geral supostamente cresceu.

Melania Trump, Donald Trump e Narendra Modi durante evento em Nova Dheli, Índia - Money Sharma/AFP

Essa contradição o persuadiu a contestar a confiabilidade das estatísticas oficiais de crescimento econômico. Sua conclusão foi a de que a o crescimento foi superestimado por, em média, 2,5 pontos percentuais ao ano, entre 2011 e 2016, o que reduziria a média de crescimento real para 4,5% anuais. Se a estimativa se confirmar, é um resultado muito pobre.

Infelizmente, as coisas agora parecem ainda piores. A economia vem se desacelerando de modo ainda mais dramático no passado recente, mesmo de acordo com as estatísticas oficiais. Elas demonstram que o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) se desacelerou para 4,5%, ante o ano anterior, no terceiro trimestre de 2019. Pode ser que o crescimento se recupere. Mas a desaceleração foi dramática, comparável até ao que aconteceu na crise do começo da década de 1990.

Assim, o que explica o crescimento fraco depois de 2008 e a desaceleração ainda mais forte no passado recente? Para começar, a expansão insustentável do investimento interno alimentado pelas exportações e crédito exagerou o ritmo de crescimento da Índia antes da crise.

Segundo, a despeito do surgimento, depois da crise, de diversos problemas de balanço nos setores empresariais, tanto financeiro quanto não financeiro, gastos do governo, a queda no preço do petróleo, e empréstimos vigorosos de companhias financeiras não bancárias sustentaram o crescimento do país. Por fim, o crédito dessas últimas instituições entrou em colapso em 2019.

O consumo então se uniu às demais formas de demanda —especialmente o investimento e exportações— em seu enfraquecimento acentuado. Hoje, argumenta Subramanian, há uma espiral viciosa em curso: altas taxas de juros, crescimento econômico fraco e baixa lucratividade estão aumentando a carga de dívidas, e assim agravando os problemas das empresas financeiras e não financeiras.

A resposta do governo parece ser a de negar as provas de uma desaceleração. Uma discussão no Ministério das Finanças, na semana passada, indicava que a reação é semelhante àquela de que me recordo em meu período de trabalho sobre a Índia para o Banco Mundial, na década de 1970: protecionismo, maior investimento pelo governo, e assistência direta às exportações.

É impossível acreditar que esse tipo de ação resolva as fraquezas profundas que explicam as recentes falhas no crescimento.

É difícil desenvolver uma boa política econômica. À medida que a economia indiana se torna mais complexa e avançada, a tarefa se torna ainda mais trabalhosa. Requer dados confiáveis, conhecimentos técnicos avançados, assessoria independente e debate aberto.

Em lugar disso, os melhores consultores se foram, em geral, e as decisões políticas, pelo que se relata, terminaram concentradas nas mãos do gabinete do primeiro-ministro. Todo mundo mais deve demonstrar lealdade, acima de tudo. Rahul Bajaj, um conhecido empresário indiano, chegou a acusar o governo de “criar um ambiente de medo”. Na minha curta passagem pelo país, na semana passada, descobri que muita gente concorda com ele, mesmo que não o faça em público.

É essencial para o futuro da Índia que o crescimento volte a subir para além dos 7%, e que esse crescimento tanto gere empregos quanto preserve o meio ambiente. Isso é um grande desafio. Exigirá que más dívidas sejam liquidadas, a poupança e o investimento cresçam, a competitividade internacional seja melhorada —em um ambiente internacional mais complicado –, e que reformas na agricultura, educação, energia e diversas outras áreas importantes sejam realizadas.

O governo atual pelo menos dispõe do mandato de que necessita para revitalizar a economia, e assim criar oportunidades melhores para todos. Que o governo tenha esse mandato também se deve ao talento político indubitável do primeiro-ministro Narendra Modi.

Mas não basta conquistar esse tipo de mandato: também é preciso saber como usá-lo. Uma alternativa à difícil estrada de criar uma boa política econômica envolve gestos dramáticos, como a desmonetização, ou reformas mal concebidas, como a introdução de um imposto complicado demais sobre os bens e serviços. Uma alternativa ainda mais fácil é depender da política de identidade.

Essa parece ser a escolha atual. A repressão na Cachemira, a discriminação explícita aos muçulmanos na nova Lei de Emenda à Cidadania, o registro nacional de cidadãos que o governo propôs adotar – em um país com documentação notoriamente ruim - e a aparente intenção de deportar os muçulmanos que não forem capazes de provar seu direito de permanecer, sugerem, juntos, uma transformação na comunidade indiana.

O mesmo se aplica ao uso gratuito de rótulos como “traidor” para descrever as pessoas que discordam do governo, e “sedição”, para seus protestos. Fica bastante claro que a transformação da Índia em mais uma “democracia iliberal” é um plano antigo. Não admira que o presidente americano Donald Trump admire Modi. Os dois jogam o mesmo jogo, mas a maioria de que Modi desfruta lhe dá mais cartas.

A Índia chegou a um momento decisivo. Seu poderoso governo pode ou concentrar seus esforços em revigorar a economia ou levar adiante a transformação de uma democracia liberal imperfeita em algo muito diferente. É fácil compreender o apelo deum projeto tão perigoso. Mas devemos esperar que Modi escute, ainda que tarde, ao lado melhor de sua natureza.

Tradução de Paulo Migliacci

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas