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Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

Misturando gêneros da TV, 'Cidade Alerta' expõe a privacidade de gente comum

Programas policiais não têm restrição quanto ao horário em que podem ir ao ar. Mas são programas jornalísticos?

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A tela do Cidade Alerta estava dividida em três na tarde de segunda-feira (17). À esquerda, o apresentador Luiz Bacci, com expressão de preocupação; no centro, uma foto de Marcela, de 21 anos, desaparecida havia uma semana; e à direita, Andreia, mãe da jovem, com fones de ouvido para participar ao vivo do programa.

Era o quarto dia em que a atração da Record tratava do caso. A certa altura, surgiu a voz do advogado do namorado de Marcela. Entrevistado por Bacci, ele revelou que o cliente havia confessado na delegacia ter matado a jovem. Foi nesse instante que Andreia desmaiou ao vivo, na televisão.

Por cerca de 20 segundos, o espectador viu Andreia se dar conta de que a filha tinha sido assassinada, acompanhou o seu desfalecimento, a ajuda que recebeu nos bastidores e a sua recuperação. Foi, então, que ela saiu da tela e apenas Bacci permaneceu no ar. Aparentemente surpreso, ele disse: “Doutor, eu não sabia. Ele confessou o caso?”.

De revirar o estômago, a cena toda já faz parte de uma coleção de barbaridades exibidas em programas policiais na TV. Como o suicídio da adolescente que o Aqui Agora mostrou ao vivo, em 1993. Ou o policial atirando em um rapaz de 17 anos caído no chão após uma perseguição, apresentado pelo Cidade Alerta e o Brasil Urgente em 2015.

Classificados como jornalismo, esses policiais vespertinos não sofrem nenhum tipo de restrição quanto ao horário em que podem ir ao ar. Mas são, de fato, programas jornalísticos?

 

Em “Para Além do Sensacionalismo” (ed. E-papers, 2009), dedicado a uma análise do Brasil Urgente, da Band, a pesquisadora Lígia Lana defende classificar estes programas como “telejornalismo dramático”. É um termo muito bom porque dá conta da mistura de gêneros que ajuda a fazer o sucesso dessas atrações.

Elas incorporam elementos do reality show (na exposição da privacidade dos entrevistados), do programa de auditório (com seus apresentadores performáticos comandando um “happening”) e das atrações de aconselhamento psicológico (baseadas na exploração de conflitos familiares, muitas vezes simulados).

Outra característica importante é a serialização dos casos policiais. Como ficam muitas horas seguidas no ar, e não há assunto para tanto, esses programas ignoram a preocupação jornalística com a síntese, alongando as histórias indefinidamente, como se fossem novelas. Sem falar na utilização de trilha sonora, para sugerir suspense ou drama.

Todas essas características não jornalísticas jogam a favor da dramatização das situações reais exibidas. O objetivo explícito é comover, não importa a que preço, garantindo a audiência em patamares altos.

A serialização, muitas vezes, obriga a polícia a investigar as situações para dar satisfação ao espectador. Em troca, Brasil Urgente e Cidade Alerta, entre outros, exaltam as forças policiais em termos heroicos.

Mas é preciso reconhecer que esta busca pela emoção também resulta em jornalismo. Os casos relatados, em sua maioria, dizem respeito a pessoas de origem humilde, desassistidas pelo poder público. Não raro, são histórias que não foram noticiadas pelos telejornais das próprias emissoras.

Nada disso, no entanto, justifica ou torna aceitável o desrespeito à privacidade dos indivíduos. A Record excluiu de suas plataformas as imagens que chocaram todos, mas não vai conseguir evitar que outros absurdos como esse ocorram enquanto apostar em programas com essas particularidades.

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