Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Uma morte premonitória
Marielle Franco representa a vitimização de corpo e alma nacionais
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Uma promessa solene do governo com expectativa global é dar prioridade a uma resposta sobre quem mandou matar Marielle Franco e por quê. Há razões para se esperar uma solução, somando-se o empenho federal ao do Ministério Público do Rio. Por aparente coincidência, tornou-se agora possível o cruzamento de dados digitais, depois de longa e desgastante negociação entre o Google americano e os promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco).
Já existe um suspeito como mandante. O cruzamento poderá ligá-lo aos executores, presos à espera de julgamento. O porquê, entretanto, será simplificado na mera imputação de uma causa a alguém. Causa é, no limite, um princípio simplificador, ou seja, exclusão de fatos e conhecimento incompleto. É origem lógica de uma verdade, mas costuma deixar em aberto uma gama ampla de realidade.
Em aberto fica a apreensão plena das circunstâncias de cinco anos atrás quando a face então obscura da barbárie nacional saía do armário no Rio. Cúmplices de milícias exterminadoras exibiam o seu trânsito entre câmaras legislativas e territórios urbanos ocupados para exploração fundiária e escravização de populações entregues à indiferença ou à violência do Estado. A aliança política com a criminalidade graúda (os miúdos preenchem estatísticas de óbitos em "autos de resistência" policiais) gerou monstros onipotentes, premiados com medalhas oficiais por "serviços prestados".
Respeitosa das instituições, a vereadora Marielle não tinha nada de militância política exaltada. Pareceu-me "um coração batendo no mundo" (Clarice Lispector, "Água Viva"), atenta ao entorno imediato, sua fala de acordo com os atos: paradigma de uma solidariedade nova. Pragmaticamente, tentava resolver problemas imobiliários em comunidades desfavorecidas. Subjetiva e objetivamente, rompia amarras, desatava nós.
Querendo ou não, ela mexia em vespeiro de bandidos. Seria pretexto para recado mafioso ao seu grupo, essencialmente antimiliciano. Ou talvez a intelectual coletiva feminina, homossexual, negro-mestiça em ascensão política fosse existencialmente insuportável ao mal que se urdia nos currais das armas e dos votos. Nada é transparente num pano de fundo desses.
Mas a morte de Marielle representa a vitimização premonitória de corpo e alma nacionais, depois cumprida na eleição presidencial e nos fatos trágicos subsequentes. Indignação à parte, pouco se analisou a quebra da placa com seu nome em um palanque: admissão pública de um torpe acumpliciamento com o assassinato e com a sordidez que chegava em onda. O mandante é necessariamente um múltiplo, assim como o nome do diabo é Legião.
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