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Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

Perfeito, rosbife ativa memórias

Estava suculenta, daquelas perfeições que se consegue de vez em quando com um simples bife

Prato com rosbife - Karime Xavier-2.dez.15/ Folhapress

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Hoje não vou falar de bibliografia. Tenho um assunto mais premente. Bem que queria ter enjoado de comida. De comer e de fazer. É tanta matéria e programa sobre o assunto que o mundo não tem mais capacidade de assimilar tanta novidade gastronômica. Mas, não é que estamos todos, embasbacados, no cinema, na TV, fascinados?

É, não importa o exagero. O ato de cozinhar vai tão longe, um monte de pedras, as chamas lambendo a caça, o cheiro de fumaça. Acho  que é o único link que ainda me liga às primeiras mulheres de cócoras. O homem feliz, bebendo e comendo, satisfeito.

E o rosbife de ontem ativou memórias, saiu perfeito. Temperei um dia antes, só com sal e pimenta do reino, amarrei com barbante, pus na geladeira durante a noite. Umas duas horas antes de começar a fazer, tirei do frio, deixei ficar à temperatura ambiente.

Usei uma frigideira de ferro, pesada, com alça de ferro, quase incandescente, como o diabo gosta. Com um tico de óleo dourei a peça inteira no fogão e enfiei no forno a frigideira mesmo, com a carne sobre uma gradezinha para não encostar no fundo. Fiquei parada ali na boca do forno com esse calorão por uns 15 minutos e tirei daquela boca do inferno. Ficou na pia, descansando por uns 15 minutos, de novo, cozinhando a si própria, sangue indo, sangue vindo, e, na hora de comer, juro a vocês, não tinha assado, tinha se transformado. Estava suculenta, vermelha sem ser crua, daquelas perfeições que se consegue de vez em quando com um simples bife. A faca afundava docemente ao cortar as fatias.

Ah, a faca! Achei a faca que havia perdido logo depois que o Amyr Klink me mandou de presente. Como esse sumiço me chateou! Tanto orgulho e prazer com o mimo inesperado e ele some assim, dentro da minha própria casa. Pois tirando o pó da estante, atrás da prateleira da Virginia  Woolf, de seus livros, de suas cartas, biografias, enxerguei uma coisa estranha. Era o punho dela, da faca, não da Virginia, sujo, a lâmina enferrujada.

Impossível descobrir como fora parar ali. Uma bênção. Sou muito desastrada para trabalhos manuais, mas lixei de leve o punho, passei bicarbonato e vinagre na lâmina, que voltou a brilhar. Ainda estou de namoro com ela, dormindo no mesmo quarto.

E vocês não acreditam, foi me dando uma vontade de aprender a afiar facas antes de morrer, mas afiar de verdade, como uma profissional, perder horas pacientes com o fio da navalha, afiando na pedra, cuidando para que não enferrujem, que deslizem pelas comidas fazendo um serviço perfeito, como os homens e as mulheres que nem conheci, cantando baixinho e feliz com um sorriso no canto da boca. Esperem e verão.

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