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Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Alexandre, o Persa

Épico medieval do Irã transformou Alexandre, o Grande em rei persa e esqueceu Ciro e Xerxes

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A fragilidade da memória humana é um negócio que me dá calafrios. E, por vezes, também me provoca uma vontade imensa de distribuir cascudos — por exemplo, quando vejo gente falando da pandemia de Covid-19 como se ela já fosse história antiga, situada em algum lugar entre os mamutes-lanosos e o reinado de Alexandre, o Grande. Não há nada mais fácil do que transformar a memória dos vivos em pó: o único ingrediente necessário é o tempo.

Fiquei boquiaberto diante de um exemplo extremo desse risco no finzinho da leitura do monumental "Persians: The Age of the Great Kings" ("Persas: A Era dos Grandes Reis"), livro do historiador galês Lloyd Llewellyn-Jones. A obra é um deleite: um relato sobre a primeira encarnação do Império Persa — mais ou menos entre 550 a.C. e 330 a.C. — que consegue adotar uma perspectiva essencialmente "persocêntrica" dessa história imperial. E isso apesar do uso inevitável de fontes ocidentais (basicamente gregas e, num grau muito menor, romanas) para reconstruir o que aconteceu nos reinados de Ciro, Dario, Xerxes e outros soberanos.

Representação do imperador persa Bahram Gur, que reinou no início do século 5º d.C. - Lila Acheson Wallace Gift, 1994/Wikimedia Commons

Não, o rei Xerxes não tinha nada a ver com a figura careca, andrógina e de tanga d’ouro encarnada por Rodrigo Santoro nos filmes da série "300" e nos quadrinhos homônimos criados por Frank Miller. As invencionices espalhafatosas de "300" são apenas o último estágio de um processo de distorção que começou com o grego Heródoto de Halicarnasso, patrono dos historiadores do Ocidente.

Não me entenda mal: Heródoto estava longe de demonizar ou desumanizar a maioria dos persas. Quando checamos suas informações básicas — nomes, datas, locais — com dados arqueológicos, o grego acerta bem mais do que erra. Mas ele coloca as guerras entre gregos e persas no centro de sua narrativa e retrata a derrota de Xerxes na Grécia em 480 a.C. como um desastre imenso para o império. Da perspectiva persa, porém, aquilo foi pouco mais do que uma escaramuça de fronteira — tanto que os domínios imperiais continuaram funcionando bastante bem por mais 150 anos.

Assombroso mesmo é o que aconteceu depois, quando Alexandre, o Grande e seus macedônios conquistaram o Império Persa em 330 a.C. — e, bem mais tarde, quando uma nova encarnação do império iraniano, após durar quatrocentos anos, foi destruída pelo avanço do Islã, em 651 d.C.

Até onde sabemos, os persas desses períodos não chegaram a desenvolver uma tradição de história narrativa, como a de Heródoto. Ou então o que havia dessa tradição sumiu em meio ao desastre das invasões.

O certo é que a memória histórica do primeiro Império Persa simplesmente virou fumaça. No poema épico "Shahnameh" ("O Livro dos Reis"), escrito por volta do ano 1000 d.C., simplesmente não há menção a Ciro, o primeiro imperador, ou mesmo a Xerxes. Sobrou apenas "Dara" – Dario 3º, o rei derrotado por Alexandre.

Na versão poética da história, porém, Iskandar (Alexandre) seria meio-irmão de Dara, tendo sido gerado pelo pai do imperador persa com a filha do rei de "Rom" (Roma: até os macedônios e romanos tinham sido transformados numa coisa só pela narrativa). Iskandar teria sido criado pela mãe no Ocidente e voltado para a Pérsia, para retomar um trono que, a rigor, era seu por direito. Traído e ferido por seus seguidores, o rei Dara teria entregado o império de bom grado ao meio-irmão, quando estava no leito de morte.

Vale ressaltar que esse poema é, até hoje, o épico nacional do Irã. Mal consigo imaginar o choque dos imperadores persas se, redivivos, vissem como seus descendentes distantes reimaginaram seus ancestrais. Os elos que nos ligam ao passado são tênues demais. Todo esforço para evitar que eles se esgarcem é precioso.

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