Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.
O capitalismo pega uma coisa bonita e a transforma numa abominação
Para descobrir que o capitalismo tem a capacidade de estragar tudo, a gente não precisa ler Marx
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
Para descobrir que o capitalismo tem a capacidade de estragar tudo, a gente não precisa ler Marx (até porque Marx também tem a capacidade de estragar tudo, a julgar pela quantidade de gente que o leu e foi fundar regimes que ele, a princípio, não aprovaria).
Basta passar pelo suplício do serviço de pós-venda, quando adquirimos alguma coisa. O serviço de pós-venda é uma das mais eloquentes demonstrações do modo como o capitalismo pega uma coisa bonita, como a cortesia, e a transforma numa abominação.
Serviço de pós-venda é diferente de ser simpático: trata-se de jogar delicadeza na cara dos clientes. Neste momento, eu tenho receio de adquirir bens ou serviços. Porque já sei que, dois ou três dias depois, vou receber um telefonema doloroso. "O senhor está satisfeito com o produto? De zero a dez, em que zero é muito insatisfeito e dez é muito satisfeito, qual é o valor da sua satisfação? O nosso atendimento foi prestável? Quão prestável, de zero a dez? Vai recomendar a nossa marca aos seus amigos? Com que entusiasmo, de zero a dez?"
Não faltará muito até que alguma empresa invente o serviço de pós-pós-venda, em que se avalia a qualidade do serviço de pós-venda. "O nosso inquérito de pós-venda o irritou? Quanto, de zero a dez?" E um inevitável serviço de pós-pós-pós-venda, para julgar a eficácia do pós-pós. "Por causa dos nossos inquéritos, o senhor já tem vontade de se matar? Quanta vontade, de zero a dez?"
Marx esteve a perder tempo com a teoria do valor-trabalho quando bastava ter chamado a atenção para o serviço pós-venda. As pessoas talvez tenham dificuldade em compreender que a criação de mais-valia resulta sobretudo de trabalho não pago --ou talvez compreendam mas não se importem.
No entanto, todo mundo compreende a desagradável opressão em que consistem os telefonemas do serviço de pós-venda.
Quando o telefone toca após uma transação comercial, eu já atendo aos gritos: "ESTAVA TUDO ÓTIMO! DEZ EM TODAS AS CATEGORIAS! VOU RECOMENDAR AOS MEUS AMIGOS TODOS, MESMO ÀQUELES QUE NÃO VEJO HÁ MUITO TEMPO. VOU LIGAR DE PROPÓSITO PARA LHES FALAR DO SEU ASPIRADOR! BOA TARDE!". E desligo.
Mais do que a exploração do homem pelo homem, é a chateação do homem pelo homem que me desumaniza.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters